Avanço da tecnologia causa mudanças nas normas que regulam a prática da medicina. É preciso estar atento a elas
Com significativa evolução decorrente da necessidade de enfrentar os desdobramentos da pandemia, a telemedicina ganhou investimentos e hoje é uma importante vertical de negócios. Números do mercado corroboram com essa afirmação, como o que aponta o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic). Segundo o instituto, a realização de consultas médicas via telemedicina atingiu o pico no País em 2021, afinal, pelo menos metade da população utilizou a telemedicina.
Mas é preciso atentar aos detalhes – ou melhor, aos vários aspectos das normas que regulamentam a prática da medicina a distância no País. A opinião é de Camila Martino Parise, consultora da área de life sciences & healthcare do Pinheiro Neto Advogados.
Essas normas, aliás, não são necessariamente novas. Para se ter ideia, no Brasil, uma das primeiras consultas ao Conselho Federal de Medicina (CFM) sobre o atendimento médico a distância foi na década de 1990 e versava sobre o atendimento remoto para prestar assistência médica aos colaboradores embarcados em navios ou plataformas marítimas.
Em termos globais, o grande marco regulatório foi a Declaração de Tel Aviv, divulgada na 51ª Assembleia Geral da Associação Médica Mundial, em outubro de 1999. O documento fixou parâmetros mínimos para conceituar a telemedicina, abrindo caminho para a criação de normas de regulamentação em cada país.
No Brasil, a primeira resolução do CFM (nº 1.643) data de 2002. Bastante abrangente, ela não proibia expressamente as consultas remotas. Mas, naquele período, em diversas oportunidades, o CFM se manifestou no sentido de que elas só poderiam acontecer depois que houvesse uma relação já estabelecida entre médico e paciente. Na prática, a primeira consulta deveria ser obrigatoriamente presencial.
Mas tudo mudou com a chegada da covid-19 – como explicaram Camila e outras especialistas do escritório Pinheiro Neto Advogados, durante o Fórum Ao Vivo A digitalização da saúde e seus impactos regulatórios, realizado em outubro pela MIT Sloan Management Review Brasil. Após vários movimentos, o setor médico foi contemplado com a lei 13.989. Publicada no Diário Oficial em abril de 2020, autorizou a prática de telemedicina no país durante a crise sanitária. Com base nela, o CFM editou a resolução 2.314, que segue em vigor até hoje.
Apesar de liberar a consulta digital, a resolução estabelece que ela não substitui a consulta presencial, ainda considerada padrão ouro de atendimento ao paciente. Além disso, no caso de doenças crônicas ou que requeiram atendimento por longo período de tempo, fica estabelecido que o intervalo entre as consultas presenciais não pode ser superior a 180 dias, explica Camila Martino Parise, consultora da área de life sciences & healthcare do Pinheiro Neto Advogados.
Entre os cuidados da prática médica a distância, está a certificação da assinatura do médico nas receitas emitidas digitalmente. No caso de medicamentos controlados, é preciso usar o sistema de reconhecimento denominado ICP Brasil. É um modelo mais robusto em comparação aos sistemas convencionais de certificação digital.
Além disso, nem todos os medicamentos controlados podem ser prescritos por meios exclusivamente eletrônicos. “Para alguns deles, considerados mais sensíveis, como psicotrópicos, é necessário que a receita seja acompanhada de documentos adicionais, como notificações ou talonários em papel”, ressalta Nicole Aun, associada sênior da área de life sciences & healthcare do Pinheiro Neto Advogados.
Não bastasse a praticidade, a receita eletrônica tem outra vantagem: a legibilidade do documento. Quem já não encontrou dificuldades para entender o que está escrito no receituário? No imaginário popular, a caligrafia quase indecifrável de parte dos médicos é até motivo de piada.
Além da receita, tem o prontuário – base de dados que inclui identificação do paciente, descrição de sintomas e histórico familiar de enfermidades, além de registros de exames, tratamentos e prescrições de medicamentos, entre outras informações. Os profissionais já podem migrar o prontuário para a esfera eletrônica.
Neste caso, a segurança dos dados é prioridade. Não à toa, os prontuários digitais estão protegidos pelo sigilo médico e pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), de 2018, que classifica as informações de saúde dos pacientes como dados sensíveis. Daí a exigência de medidas rigorosas de controle e proteção, desde a coleta até o descarte das informações.
Cabe destacar que o prontuário é propriedade do paciente, e não do médico. “Pouca gente se dá conta disso. Seja no papel ou digital, o prontuário é do paciente, que pode, inclusive, pedir a portabilidade dos dados para outra instituição de saúde”, diz Nicole.
O avanço da tecnologia também causou impactos no setor de saúde suplementar do país. Em 2021, foram registradas 32 operações de fusão e aquisição, movimento que envolve nomes como Dasa, Hapvida, Fleury, NotreDame Intermédica, Rede D’Or, SulAmérica, configurando uma tendência de maior consolidação do mercado e de movimentos como verticalização, parcerias e a criação de ecossistemas de saúde. A expectativa é que esse processo gere mais oportunidades de fomentar a concorrência, segundo Luciana Sakamoto, que também atua como associada sênior da área de life sciences & healthcare do escritório Pinheiro Neto Advogados.
Outra consequência foi o incremento das healthtechs, startups que oferecem produtos já desenvolvidos e prontos para as grandes empresas do setor. “A tecnologia chegou para ajudar a reduzir custos, otimizar processos e auxiliar na gestão do plano de saúde, seja na ponta da operadora de plano de saúde, seja na ponta do contratante dos planos de saúde coletivos empresariais”, afirma Luciana.
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