Até mesmo empresas bem-intencionadas continuam enfrentando desafios em seus esforços de treinamento, investigação e práticas disciplinares relacionadas ao assédio sexual, sob risco de serem responsabilizadas juridicamente e perder talentos
Embora o movimento #MeToo tenha evidenciado a prevalência do assédio sexual no ambiente de trabalho, os empregadores levaram tempo demais para fazer as devidas mudanças para enfrentar a epidemia desse tipo de abuso. Como resultado, as organizações frequentemente se encontram em posições indefensáveis quando são processadas por assédio sexual. Além disso, são significativos por si só os riscos de evasão de talentos nessas empresas, assim como os riscos jurídicos e financeiros. É possível que bons funcionários não só deixem essas empresas como também as processem.
Apesar da redução no número de reclamações formais de assédio sexual durante o auge da pandemia de covid-19, os benefícios monetários concedidos aos reclamantes aumentaram mais de 30% em 2022 em comparação com o início do movimento #MeToo em 2017, conforme relatado pela Comissão de Igualdade de Oportunidades de Emprego dos Estados Unidos (EEOC, na sigla em inglês). Espera-se que as cifras finais para 2023 sejam significativamente mais altas, especialmente devido à histórica indenização de $215 milhões concedida aos reclamantes em um acordo firmado com o Goldman Sachs em maio de 2023.
As empresas precisam abordar essa questão de frente. A vulnerabilidade de uma organização em relação a esse tema muitas vezes está diretamente ligada à sua abordagem geral ao assédio sexual. Embora isso possa parecer subjetivo, o assédio se resume essencialmente a três componentes: medidas preventivas, investigações de denúncias e penalidades para os assediadores.
Por mais de 16 anos, atuei como testemunha especializada em dezenas de casos de discriminação e assédio nos Estados Unidos. Durante esse tempo, testemunhei tanto as ações quanto as omissões que permitem que o assédio seja ignorado, deixando as organizações vulneráveis diante de processos judiciais. Embora as leis e normas relativas ao assédio sexual variem de país para país, certas práticas organizacionais são universalmente mais eficazes do que outras. Com base em minha experiência, identifiquei cinco erros comuns que até mesmo organizações bem-intencionadas cometem em relação ao assédio sexual.
O treinamento é um dos principais meios de prevenir o assédio sexual. Nos Estados Unidos, alguns estados atualmente exigem que todos os empregadores forneçam treinamento de prevenção ao assédio sexual, enquanto outros exigem apenas que os empregadores públicos o forneçam. Há ainda estados que simplesmente recomendam que o treinamento seja dado e aqueles que sequer oferecem orientações. Ainda assim, mesmo antes do movimento #MeToo, uma pesquisa com profissionais de RH revelou que 71% de seus empregadores ofereciam algum tipo de treinamento.
No entanto, ao avaliar cultura de tolerância ou a predisposição para ocorrência de assédio sexual em uma organização, um profissional experiente em RH provavelmente explicaria a um juiz ou júri que seria insifuciente simplesmente confirmar se houve ou não um treinamento de prevenção a esse tipo de abuso. Em vez disso, ele testemunharia sobre a probabilidade de o treinamento ter sido ou não eficaz.
Pesquisas sugerem que treinamentos de prevenção a assédio sexual com menos de quatro horas, on-line e que não sejam interativos têm efeito zero. Da mesma forma, o treinamento de assédio que é um evento isolado durante a integração é propenso a ser visto como fútil. Se o treinamento de sua organização se encaixa em alguma dessas categorias, é hora de revisá-lo.
Como o treinamento é parte da estratégia preventiva para evitar um clima de assédio mais amplo, seu principal objetivo deve ser incentivar outras pessoas, além da vítima ou do assediador, a serem parte da solução.
Em muitos casos que são levados à justiça, a responsabilidade decorre do fato de que o assédio é frequentemente um segredo aberto que não é denunciado ou abordado.
Não raro, em vez de denunciar o assediador, as pessoas alertam os novos membros do grupo de trabalho a evitar ficarem sozinhos com essa pessoa. Dado que os funcionários muitas vezes (compreensivelmente) estão preocupados em falar contra o assédio — especialmente quando o assediador está em uma posição de poder — as organizações devem incluir treinamento de intervenção do espectador com o objetivo de encorajar as pessoas a expressar preocupações.
Algumas empresas estabelecem linhas diretas anônimas. Mas, na prática, elas pouco são usadas, tornando ainda mais importante que os espectadores aprendam a intervir efetivamente.
Por mais inócua que possa parecer aos olhos de quem a recebe, nenhuma denúncia deve ser menosprezada. Muitas vezes, reclamações ligadas a comportamentos do suposto assediador tendem a ser desprezadas sob a alegação de que o “fulano agiu assim porque ele é assim” ou de que determinado comportamento não é de natureza sexual, como, por exemplo, chamar uma colega de trabalho de “cadela”.
O assédio, no entanto, está nos olhos de quem o sente na própria pele. Portanto, se alguém achar que um comportamento incomoda o suficiente para ser denunciado, o RH tem a obrigação de investigá-lo. A correlação entre assédio sexual e maus-tratos em geral está bem estabelecida na literatura acadêmica e pode afetar a forma como os processos judiciais se desenrolam.
Confiar na incivilidade geral do assediador como defesa não é uma escolha eficaz.
Por exemplo: no caso Ravina vs. Columbia University e Bekaert, em que um membro do corpo docente júnior alegou assédio sexual e retaliação por parte de um professor titular, os réus tentaram argumentar que, como este último era habitualmente rude e hostil, as alegações de assédio da professora júnior eram menos críveis. O professor titular e a universidade foram considerados responsáveis pela retaliação, e a autora da ação, Enrichetta Ravina, acabou recebendo US$ 750 mil por danos morais e US$ 1,5 milhão para cobrir honorários advocatícios e custas judiciais.
As denúncias também costumam não ser investigadas quando se trata de comportamentos tidos como “aceitáveis” em determinados locais de trabalho.
Por exemplo: após a vitória do time feminino da Espanha na Copa do Mundo de 2023, o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luis Rubiales, deu um beijo nos lábios de uma das estrelas da partida, a meio-campista Jenni Hermoso, diante de 1,5 bilhão de telespectadores. Após uma onda de críticas, Rubiales foi pressionado pela mídia a falar sobre seu comportamento. No depoimento, ele disse que não fez nada de errado e ainda destacou que, “dentro da bolha da RFEF, ninguém deu a menor importância para o fato”. Mas, como Hermosa afirmou publicamente que o beijo foi indesejado – nas redes sociais, afirmou: “Eu me senti vulnerável e vítima de um ato impulsivo, machista, deslocado, sem qualquer consentimento da minha parte”. Após o fato, Rubiales renunciou ao cargo. Com a recente decisão de um juiz de que o beijo não foi consensual, o ex-presidente da RFEF agora enfrenta uma acusação criminal de agressão sexual.
Os maus-tratos a colegas de trabalho ou funcionários devem ser sempre endereçados e tratados pela organização, independentemente de atingirem ou não o nível de violação da política de assédio, pois isso demonstra um compromisso com a correção.
Além disso, para os poucos casos em que um assediador genuinamente pode não ter percebido que ultrapassou o limite, uma investigação e uma advertência, por escrito, podem ser o bastante para mudar seu comportamento.
Segundo a EEOC, investigações eficazes são rápidas, completas e imparciais. Em geral, os registros da investigação são apresentados durante o litígio, o que faz com que seja de interesse do empregador garantir que o investigador seja imparcial e treinado para essa tarefa.
Embora as investigações internas sejam tipicamente conduzidas pelo departamento de recursos humanos, os programas acadêmicos de RH raramente incluem essa formação específica como parte do currículo. Sendo assim, cabe às próprias empresas oferecer formação aos encarregados de conduzir as investigações.
O prazo adequado para começar a investigação não deve passar de poucos dias após o recebimento da queixa formal. Já a conclusão deve se dar em algumas semanas. Como a maioria dos levantamentos internos não requer mais do que um punhado de entrevistas, esse é um prazo razoável.
Prolongar a investigação pode implicar um risco ou uma revitimização para o/a reclamante, que se vê forçada a continuar trabalhando ao lado de quem o/a assediou sexual enquanto corre o processo interno – o que obviamente é indesejável, especialmente em situações em que o assédio foi flagrante (por exemplo, agressão sexual).
Embora os reclamantes normalmente não possam controlar a velocidade de uma investigação, um processo excessivamente longo pode levar até mesmo à responsabilização da organização, pois sinaliza que esta não levou a sério sua obrigação de fornecer um local de trabalho livre de assédio.
Já o rigor com que se investiga é definido pela situação. Isso inclui coletar e-mails, mensagens de texto e de voz, vídeos e quaisquer outras evidências que possam apoiar a alegação, bem como entrevistar todas as pessoas que possam ter conhecimento sobre o teor da denúncia e solicitar que forneçam seu próprio relato do que aconteceu.
Uma boa prática para garantir que o investigou capturou fielmente o que foi relatado é pedir às testemunhas que assinem o documento com as anotações das entrevista. Por outro lado, ter testemunhas assinando um depoimento escrito por um terceiro – uma prática rara, mas não inédita, na minha experiência – pode sinalizar para um especialista em RH que a investigação foi uma farsa.
Embora conduzir adequadamente cada investigação seja importante, as organizações também precisam garantir que haja um sistema para gerenciar reclamações formais de assédio. Lidar com investigações é uma tarefa atribuída a um funcionário e, como em qualquer tarefa, os empregadores devem avaliar o quão bem ela está sendo executada. No mínimo, o sistema deve permitir rastrear quando a denúncia foi feita, as datas de início e término da investigação, as testemunhas ouvidas e a determinação final.
Esse processo organizacional permite que os empregadores monitorem os prazos de atendimento e o cuidado na realização do mesmo. Por exemplo: se os investigadores raramente entrevistam testemunhas além do demandante e do suposto assediador, isso pode sinalizar que não estão sendo suficientemente minuciosos. Da mesma forma, se todas ou quase todas as investigações resultam na conclusão de “sem fundamento”, isso pode sinalizar que o investigador não está engajado na difícil tarefa de lidar com uma alegação de assédio.
Talvez o motivo mais importante para rastrear alegações e investigações de assédio seja permitir que as organizações identifiquem infratores reincidentes. Examinar cada queixa de forma isolada pode ignorar o fato de que a mesma pessoa foi acusada por várias pessoas.
Se nunca forem disciplinados, os assediadores estarão sendo indiretamente “encorajados” a se envolver em comportamentos ainda mais graves.
A EEOC insta os investigadores a pesarem a credibilidade relativa de cada lado da história. E, na medida em que alegações anteriores infundadas se acumulam, estas devem influenciar nas avaliações de credibilidade em casos subsequentes.
Não disciplinar os assediadores pode ter consequências graves, especialmente diante da crescente prevalência de assédio não abordado. Quando ações judiciais são iniciadas por casos de assédio mais sérios, os tribunais geralmente levam em conta a resposta (ou a falta dela) da organização a comportamentos menos graves e anteriores.
Por exemplo, um acordo de US$ 23 milhões foi firmado entre as partes envolvidas em um processo contra o Charleston Area Medical Center, na Virgínia Ocidental, devido a um gastroenterologista que agredia sexualmente pacientes do sexo feminino. Fontes consultadas disseram que, antes da agressão sexual ser descoberta, era amplamente sabido que o médico rotineiramente fazia perguntas constrangedoras aos membros da equipe (principalmente mulheres) sobre suas vidas sexuais e corpos. A falta de qualquer tipo de ação disciplinar para com esse assédio de membros da equipe interna, apesar do conhecimento generalizado de tal comportamento, provavelmente influenciou a definição do montante a ser pago.
Embora a defesa sólida de uma organização exija que “tenha havido cuidados razoáveis para prevenir e disciplinar prontamente qualquer comportamento de assédio”, de acordo com a orientação da EEOC, os pesquisadores têm sido lentos para estudar os fatores que afetam as decisões disciplinares.
No entanto, pesquisas em que meus colegas e eu estamos trabalhando atualmente apontam que os as pessoas são menos propensas a fazer uso de ações disciplinares quando adotam crenças tradicionais sobre papéis de gênero (como “meninos são assim mesmo”) ou quando o trabalho da vítima está fora das expectativas profissionais de gênero mais comuns (como uma engenheira ou um assistente administrativo masculino) ou, ainda, quando a política de assédio sexual da organização é menos explícita.
EMBORA AS ORGANIZAÇÕES NEM SEMPRE sejam capazes de impedir que certos indivíduos pratiquem assédio sexual, os exemplos acima mostram que elas podem e devem mitigar suas responsabilidades, demonstrando que se envolveram em esforços significativos para preveni-lo e remediá-lo.
Um programa de formação com credibilidade, que incentive terceiros a intervir é um elemento importante da prevenção. Da mesma forma, um processo sólido para investigar queixas e procurar padrões de comportamento, juntamente com uma política disciplinar uniformemente aplicada para os infratores, sinaliza que a organização leva a sério o combate ao assédio antes que ele se agrave.
Além de seu valor na redução de responsabilidades, esses esforços também podem ajudar as organizações a criar um ambiente no qual colegas talentosas queiram trabalhar e permanecer.