6 min de leitura

Está na hora de as startups olharem para a própria marca

Bolso infinito já não é garantia de nada. Acostumadas apenas ao crescimento agressivo, muitas gigantes viram suas marcas corroerem

Ricardo Cavallini
30 de julho de 2024
Está na hora de as startups olharem para a própria marca
Este conteúdo pertence à editoria Estratégia e inovação Ver mais conteúdos
Link copiado para a área de transferência!

Como vocês devem estar acompanhando, muitas empresas de tecnologia viram suas ações caírem de maneira assustadora no último mês. Já existem diversas explicações, e vou adicionar uma: o método Amazon de abrir mão do lucro em troca de crescer exponencialmente parece estar ficando pra trás.

Não que economia de escala não seja uma boa tática. Também não significa que a grana infinita dos investidores tenha secado. Mas estamos em um momento diferente.

O que adianta o Uber ter bilhões de dólares para conquistar o mercado se, ao seu lado, tem iFood e 99, ambos também com seus bolsos infinitos? O Uber continua crescendo, mas não exponencialmente.

Isso tem relação com gastar dinheiro de forma eficiente, mas não da maneira como a maioria acredita. O problema não é queimar dinheiro, mas não conseguir crescer exponencialmente e virar o monopólio que muitos almejam ser.

A Netflix investiu dezenas de bilhões em produção de conteúdo que pode matar a TV por assinatura, mas agora tem ao seu lado empresas como Amazon, Apple e Disney, também com bolsos infinitos e vários outros diferenciais. A Netflix continua crescendo, mas seu market share está diminuindo.

Não se trata apenas de buscar rentabilidade, como bradam alguns, mas do plano de longo prazo que leva em conta que dinheiro infinito não é uma exclusividade. A barreira de entrada não pode ser esse bolso infinito.

Queimar dinheiro em si era eficiente. Hoje não é mais. Está na hora de cuidar das marcas.

O que diferencia a 99 do Uber? Nada. Na percepção de usuários e motoristas, absolutamente nada.

Acostumadas a agressividade de crescimento e foco total em aquisição (como a maioria das startups), ambas pensaram apenas em crescer, crescer e crescer. Nenhuma preocupação com suas marcas.

Sim, é claro que a construção da marca passa por todo e qualquer ponto de contato com o cliente e a sociedade. Vai da escolha de uma palavra usada pelo diretor em uma entrevista, passa por ações afirmativas, pela posição política, pela usabilidade do app, a qualidade do pós-venda e tudo mais.

Mas a real é que praticamente tudo isso hoje responde à aquisição. Até o cuidado com qualidade e velocidade do atendimento acaba sendo relevante apenas quando é visto como diferencial. Quando a empresa cresce, muito disso acaba ficando para escanteio. Não se trata da dificuldade de escalar, mas do conforto de quem já é grande o suficiente para mudar sua postura.

Talvez o melhor (pior) exemplo de total falta de preocupação com a marca seja o Facebook. Tantos escândalos, tantos erros, tantos pedidos de desculpa. Se tem alguém que nunca ligou para marca e só se preocupou em crescer a todo (e qualquer) custo, é o Facebook.

Alguns anos atrás, em um movimento de desespero para melhorar sua imagem, passou a usar o “Instagram From Facebook”. A ideia era melhorar a imagem do Facebook, mas acabou detonando a marca Instagram.

Não se constrói marcas com truques. Agora mudaram o nome da holding para Meta. Você abre o Instagram e aparece “Instagram from Meta”.

Zuckerberg a vendia como a empresa que se propunha a juntar as pessoas. Na prática, em busca do crescimento a qualquer custo, ele fez o oposto, nos separou e ajudou a criar uma polarização na sociedade.

Marca não é uma estorinha. Storytelling sem propósito não vale nada. Narrativa sem consistência, também não. Em tempos de ESG, estamos tendo novamente essa discussão, mas as startups parecem estar distantes dela.

Na maioria das startups, a marca acaba sendo atrelada a atributos ou vantagens que, hora ou outra, acabam caindo. Nas que se tornaram gigantes, é fácil perceber esse movimento.

A Netflix nunca se posicionou direito. Era sempre baseado em alguma característica específica. A senha que pode ser compartilhada, o baixo preço da assinatura, a ausência de propaganda e, como diz o próprio slogan, o serviço que pode ser cancelado a qualquer momento. Features que podem mudar e nos fazer pensar, o que é a Netflix mesmo? E que será a Netflix com preços maiores, propaganda e coibindo clientes que compartilham senhas?

A diferença entre 99 e Uber? Sempre momentânea. Mês passado, uma estava mais barata. No anterior, a outra estava com muitas corridas canceladas. O consumidor acaba olhando apenas para o lado mais prático. Qual delas está melhor este mês? Não existe fidelidade, e nenhuma das duas pode reclamar disso.

É o banco digital que promete ausência de anuidade, não transparência. O outro que promete mimos e conta grátis, não a ausência de burocracia e respeito. Se é apenas preço, nunca valores, mudamos sempre quando algum deles fica mais barato.O que é Nubank? É uma empresa cuja cor é roxa. O que mais sabemos dela? Se existisse uma preocupação verdadeira com a marca, ela teria uma missão e uma personalidade que todos entenderíamos bem.

Para dar um exemplo, se fosse para ser um banco justo, nunca teríamos escutado de sua diretora que contratar quem não fala inglês seria nivelar por baixo. Talvez não veríamos bonificações de diretores dez vezes maiores que as dos maiores (e mais lucrativos) bancos do Brasil.

Nada contra o lucro ou contra bonificações (pelo contrário), mas no período em que o banco enfrenta o seu pior momento de marca, é difícil compreender esse movimento. Eu explico: estão menos preocupados com a marca como deveriam.Com o amadurecimento do mercado de startups, sejam elas fintech, de streaming, aplicativos de entrega ou qualquer outra, está bem claro onde essas empresas erraram. São serviços, não marcas.

A dica vale para as startups de todos os portes. Marca é importante. Sempre foi, sempre vai ser. As startups acharam que eram imunes a isso, alimentadas por investidores que só queriam sair no primeiro exit. Foi um erro de leitura. As startups, tão acostumadas a “”pivotar”, agora precisarão mudar também nesse aspecto.”

Ricardo Cavallini
Ricardo Cavallini é um dos pioneiros do movimento makers no Brasil, professor da Singularity University Brasil, embaixador da MIT Sloan Review Brasil e autor de vários livros sobre marketing digital.

Deixe um comentário

Você atualizou a sua lista de conteúdos favoritos. Ver conteúdos
aqui