Estamos às vésperas de uma rotatividade absurda; as organizações precisam ousar em esforços de upskilling e reskilling para todos,
Desenvolver as competências e a infraestrutura para o que chamamos de “lifelong learning” – ou aprendizado por toda a vida – era a maior das minhas prioridades antes da pandemia. Mas, conforme começamos a sentir a crise econômica geral e seu impacto na empregabilidade e na recolocação, as questões de “upskilling” (para evoluírem nos trabalhos atuais) e “reskilling” (para mudarem de trabalho) também se tornaram prioritárias no mundo todo.
Os governos têm uma contribuição a dar nesse caso, como vimos em Singapura, que oferece um modelo para iniciativas patrocinadas pelo governo com vistas a promover o desenvolvimento de competências e o lifelong learning. Mas o papel corporativo nisso é vital. [Sobretudo no Brasil.] A experiência on the job é o principal motor de desenvolvimento de competências, e as empresas têm uma visão privilegiada do que é exigido para o trabalho; em alguns casos, elas também têm um modo mais afiado de desenvolver seus colaboradores. Em levantamento recente, 94% das lideranças disseram esperar que seus funcionários adquirissem novas habilidades no dia a dia do trabalho (o que representa uma alta de 65% em relação a 2018).
Uma nuance específica desse desafio, porém, é fazer o “match” de iniciativas e recursos, alocando-os onde são mais necessários. Hoje há programas de desenvolvimento de competências bem estabelecidos para funções de alta qualificação, mas isso não basta. Há muito mais trabalhos de baixa qualificação e de baixa remuneração. E estes requerem ainda mais desenvolver competências, porque são, tipicamente, os mais vulneráveis à automação, além de estarem em setores em que há mais rotatividade.
Não é surpresa que os executivos estimem que, em média, cerca de 40% de seus trabalhadores precisarão de um programa de reskilling de até uns seis meses. É importante saber que para esse trabalho de baixa remuneração as transições associadas à rotatividade são particularmente difíceis, uma vez que exigem acesso a recursos que costumam ser escassos – tempo, dinheiro e atenção.
Como psicóloga, e humanista, parto da premissa de que a maioria dos adultos está motivada a aprender e desenvolver habilidades no momento, para construir resiliência contra os desafios atuais e se proteger contra choques futuros. Eles têm feito isso investindo seu tempo e seus recursos, às vezes grandes doses de ambos, para aprimorar as competências na função atual (upskilling) ou para a requalificação (reskilling), na esperança de um emprego melhor. Como comenta Matt Sigelman, CEO da plataforma de mercado de trabalho Burning Glass Technologies: “não dá para reprimir o desejo e a capacidade das pessoas de subir na vida”. E esse impulso humano ajuda. Mas não basta.
Os executivos corporativos devem criar também uma infraestrutura de aprendizagem que permita que as pessoas aproveitem tal impulso inato e se motivem ainda mais. Para tanto, eles precisam executar três ações:
(1) deixar claras as trilhas de desenvolvimento, para que os funcionários saibam como conseguir empregos com melhor remuneração;
(2) alavancar novos hábitos de aprendizado, tornando o treinamento de baixo custo disponível em grande escala; e
(3) investir de modo amplo em oportunidades de desenvolvimento de competências não só para seus funcionários, mas também para os das cadeias de fornecimento e das comunidades de stakeholders em geral.
Embora, para muita gente, a experiência do trabalho em si já ajude a desenvolver novas competências, nem todo emprego tem esse potencial. Algumas funções são comparadas a uma escada rolante: a mera experiência de estar ali já eleva você. Outras são ruas sem saída, que não levam a lugar algum. O desafio para os trabalhadores é distingui-las.
Por mais que a ascensão esteja mais disponível ou visível em certos caminhos de carreira, esse nem sempre é o caso em trabalhos de menor qualificação, nos quais as escadas rolantes podem ser fundamentais. Para entender isso melhor, um estudo recente acompanhou as trajetórias de 100 mil empregados americanos e descobriu que metade deles ascendeu para trabalhos mais bem remunerados. As funções do tipo escada rolante incluem, por exemplo, atendimento ao cliente, vendas, venda de anúncios, conserto de computadores, enfermagem, soldagem e usinagem. Esses trabalhos de nível médio são um passo na jornada para uma remuneração melhor.
O que essas funções de acesso costumam ter em comum é que desenvolvem competências fundamentais. Em geral são “habilidades humanísticas”, como capacidade de ouvir, comunicação, empatia, bom senso e tomada de decisão. Tais habilidades têm um papel fundamental no sentido de destravar o valor das habilidades técnicas. No fundo, sem elas, os indivíduos não conseguem utilizar por completo suas habilidades técnicas. E parte da importância dessas competências fundamentais é que, diferentemente das técnicas, que em geral duram pouco, elas são valiosas ao longo de toda a vida profissional.
É possível para as empresas identificar e utilizar essas escadas rolantes e funções de acesso. Veja a IBM, que desenvolveu e agora implanta um chatbot chamado Myca (abreviação de My Career Advisor, meu guia de carreira, em tradução livre). O Myca usa uma variedade de dados internos e externos em tempo real (incluindo dados do sistema de RH da IBM, dados de oportunidade internos e dados do mercado de trabalho externo) para conversar com os funcionários sobre seu desenvolvimento de habilidades atual e futuro. Usando tecnologia de linguagem natural, o Myca descreve o perfil atual de competências dos funcionários, mostra a eles funções de acesso e destaca como a lacuna de habilidades pode ser preenchida.
Ou pense na empresa de telecomunicações AT&T, que está investindo mais de US$ 200 milhões por ano para desenvolver programas de treinamento para trabalhos digitais de alto valor – em especial aqueles que exigem habilidades procuradas, mas difíceis de encontrar. Quando acompanharam a trajetória dos participantes, os programas descobriram mais de 4,2 mil pivotagens de carreira. E em vez de buscar pessoas fora, a AT&T foi capaz de preencher mais de 70% das vagas com pessoal interno requalificado.
O que quero dizer com tudo isso é que as empresas e os executivos podem disparar agora algumas ações, não precisam esperar por nada. Eles podem jogar seu foco sobre as trajetórias de papéis de menor remuneração, identificar na organização as funções de acesso a escadas rolantes, que podem levar a trabalhos melhores e mais bem remunerados, e fazer o cruzamento entre as duas coisas. E os líderes ainda podem fazer mais.
É possível reforçar o desenvolvimento desse público menos qualificado investindo tanto em destravar habilidades técnicas (e especificamente tecnológicas) como em habilidades soft que são bastante procuradas, mas difíceis de encontrar. Num estudo com 100 mil trabalhadores dos Estados Unidos, quase 50% ascenderam na carreira. Estes disseram que trabalhos escada rolante realmente contribuíram, mas não foi só isso. Um fator-chave que diferenciou quem subiu de quem ficou estacionado foram os treinamentos de habilidades extras fornecidos pelos empregadores – ou, em alguns casos, pagos do próprio bolso. Então, pergunte-se: como sua empresa pode disponibilizar esse treinamento de modo escalável e com baixo custo para mais pessoas?
Há um ponto de partida bom para isso. A pandemia de covid-19 abriu quase um janela de oportunidade, pois as pessoas se acostumaram com o aprendizado online e a colaborar de modo virtual com colegas de trabalho. [A janela fecha se elas se desacostumarem, no entanto.] Essa experiência também gerou crescimento no mercado de ensino a distância e garantiu uma aceitação mais ampla, tanto no nível corporativo quanto individual, do valor do treinamento online.
No início da pandemia, conversei com Jeff Maggioncalda, CEO da plataforma de educação online Coursera, sobre como ele sentia que as necessidades educacionais estavam mudando. Já naquele momento, ele viu que o aprendizado patrocinado pela empresa crescia bem depressa, no ritmo do aprendizado financiado individualmente.
A plataforma Coursera vinha ampliando o ensino de novas habilidades, apresentando-as num modo “elástico” [para servirem a vários fins]. Na época, as matrículas na China, no Japão e na Itália já tinham aumentado 300%, com predominância dos cursos de saúde pública. De lá para cá, ficou cada vez mais claro para Maggioncalda e sua equipe que novos hábitos de aprendizado vêm sendo criados e também uma nova forma de trabalhar. “Temos visto uma quantidade incrível de compartilhamento e um novo espírito de aceitação de coisas novas”, ele disse. Ou seja, pessoas de todo o mundo passam a adotar o digital e a ser mais inovadoras, criativas e colaborativas.
Governos como o de Singapura são capazes de examinar todo o ecossistema de competências de uma região ou país a fim de compreender a dinâmica do mercado de trabalho e saber em que melhor investir no apoio à transição e ao treinamento profissionais. Isso vale para empresas? Acredito que sim.
É inevitável que muitos executivos adotem uma abordagem isolacionista e se concentrem em sua própria empresa e em seus funcionários atuais. Mas essa visão corporativa isolada me parece uma oportunidade perdida, principalmente em países em que os governos não estão executando uma estratégia bem coordenada para o desenvolvimento de habilidades. [Como é o caso brasileiro.]
Essa visão isolada também pode prejudicar o sucesso de longo prazo da empresa. Em um mercado de trabalho cujas qualificações têm se restringido, o fluxo de futuros funcionários (e consumidores) é tão importante para as empresas quanto os funcionários atuais. Quando olhamos mais amplamente para essa questão de oportunidade, surge a discussão sobre responsabilidade social corporativa.
Bilhões de pessoas precisam de empregos melhores, com salários mais altos e maior possibilidade de ascensão, e as empresas podem desempenhar um papel crucial ao olhar além de seus próprios limites e funcionários atuais para a comunidade mais ampla, a fim de enfrentar essa necessidade emescala global.
Foi essa perspectiva ampla que levou a equipe de executivos da Microsoft a lançar uma iniciativa global no início de 2020 com o objetivo de treinar 25 milhões de pessoas em todo o mundo em habilidades digitais. Para isso, os líderes se valeram de seus próprios recursos na construção de novas parcerias. Internamente, trabalharam com dados de ofertas de empregos no LinkedIn e com os perfis de habilidades de milhões de desenvolvedores na plataforma de compartilhamento de códigos GitHub para construir fluxos de dados em tempo real.
Essas informações lhes deram uma compreensão profunda e granular de trabalhos desejados e, ao mesmo tempo, lhes permitiram mapear as habilidades requeridas e entender os “skill sets”. O resultado foi um sistema de navegação para pessoas motivadas a fazer o upskilling. Para oferecer apoio a quem está na escada rolante, por exemplo, a equipe da Microsoft trabalhou com uma variedade de fornecedores para oferecer acesso gratuito a módulos de aprendizado, certificações de baixo custo e ferramentas gratuitas de procurade emprego.
Além disso, a empresa doou US$ 20 milhões para apoiar, no mundo todo, organizações sem fins lucrativos comprometidas em apoiar o upskilling.
Estamos saindo da pandemia e lutando contra a recessão econômica. Como conseguiremos que os trabalhadores, de todos os níveis, motivem-se e se dediquem a aprender novas habilidades? Essa é a pergunta-chave a ser respondida. Pois uma coisa é certa: há uma grande oportunidade de alavancar novos hábitos de aprendizado e a agenda das novas habilidades.
O que os líderes corporativos precisam fazer é incentivar, de todas as maneira possíveis, todos os seus funcionários a aprender. Quanto aos dos níveis hierárquicos mais baixos, eles devem alocá-los em funções do tipo escada rolante e investir significativamente em recursos que os ajudem a aprender – ao menos os que estão motivados a isso. “