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O mito da comoditização

Diferentemente da teoria econômica, a história dos negócios indica que os produtos atualmente definidos como commodities muitas vezes provam ser plataformas excepcionalmente convidativas para a inovação

Michael Schrage
29 de julho de 2024
O mito da comoditização
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Ao contrário do software, do silício ou da recombinação de DNA, a torrada é um símbolo improvável de inovação sustentável. O pão aquecido não possui o charme de alta tecnologia de microprocessadores multicore ou das reações em cadeia da polimerase, e a história tecnológica da torradeira de fato não é exatamente persuasiva, nem se encaixa bem na sabedoria convencional de investimentos em inovação observado em todo o mundo.

Essa sabedoria convencional, falsa, já foi descrita, entre outros, pelo jornal britânico _Financial Times_:

_“Bruce Greenwald, professor da Columbia Business School, cujo curso sobre investimentos é recomendado até por Warren Buffett, trata esse fenômeno de maneira memorável. ‘No longo prazo’, diz ele, ‘tudo é uma torradeira’. Em outras palavras, todas as grandes inovações acabam se transformando em commodities, compradas com base no preço e em nada mais. Mais cedo ou mais tarde, os programas de software da Microsoft, os microprocessadores Intel, os computadores Dell e os roteadores Cisco serão todos torradeiras.”_

A afirmação é inteligente, simples e memorável. Mas será ela verdadeira? A história diz que não. Embora as torradeiras não sejam ícones de inovação pós-industrial, mesmo uma revisão superficial de sua constante reinvenção revela que elas não são commodities por nenhuma definição significativa do termo. Além disso, eles ainda ganham muito dinheiro, além de torradas melhores. A evolução técnica da torradeira é, na verdade, um estudo de caso de inovação rentável, não apenas de preço e concorrência. Commodities não são destino.

A Crompton & Company, da Inglaterra, introduziu no mercado uma torradeira elétrica já em 1893. O avanço tecnológico que tornou possível a torradeira moderna, no entanto, foi a invenção de Nichrome, em 1905 – a liga de níquel e cromo que se tornou o meio para aquecimento infravermelho controlado. Em 1909, a D-12 da General Electric Co. tornou-se a primeira torradeira comercialmente bem-sucedida da América. O produto foi vendido por US$ 3 e só podia torrar um lado do pão por vez; como as tomadas de parede eram incomuns, o cabo de alimentação era projetado para ser parafusado em uma tomada.

Uma década depois, em 1919, Charles Strite revolucionou a tecnologia com a invenção da torradeira pop-up, em que a torrada “salta” quando está pronta. Ele a vendeu inicialmente para restaurantes. Em 1926, a Toastmaster – uma versão para consumidores – chegou às prateleiras anunciando “torradas perfeitas sempre! Sem precisar virar! Sem queimar!”.

As vendas de torradeiras somente nos Estados Unidos cresceram de 400 mil unidades em 1922 para 1,2 milhão em 1930. A ascensão desse eletrodoméstico até levou as padarias a inovar na tecnologia vendendo pães pré-fatiados. 

Torradeiras totalmente automáticas surgiram na década de 1940. A General Electric transformou as bancadas do eletrodoméstico e da cozinha em 1956 com a introdução do utensílio. A inovação das torradeiras até gerou novidades comestíveis personalizadas para a tecnologia: as pop-tarts da Kellogg’s, por exemplo, foram lançadas com sucesso em 1964. Pop tarts são biscoitos pré-cozidos e recheados,  populares nos EUA.

Paralelamente, novos alimentos para o café da manhã, como bagels, criaram a necessidade de torradeiras com slots mais amplos, introduzidos na década de 1980. Plásticos resistentes ao calor levaram a novas formas, cores e revestimentos. Os anos de 1990 introduziram chips de silício de baixo custo para melhor regulagem da temperatura e da inteligência da torradeira.

É certo que esses poucos parágrafos não podem fazer justiça à riqueza e variedade de tecnologias inovadoras, materiais e mudanças de estilo de vida que transformaram radicalmente a torradeira no século 20. A realidade simples é que praticamente nenhum observador ou participante sério do mercado global de utensílios de cozinha, que movimenta bilhões de dólares anualmente, descreveria torradeiras como commodities.

Uma análise da _Gourmet Retailer Magazine_ de julho de 2005 nos mostra a visão do setor: “A redução de famílias oferecerá aos fabricantes oportunidades para desenvolver produtos para grupos menores, que vão desde dormitórios de faculdade a quartos quase vazios. Muitos acreditam que essa tendência ajudará a impulsionar as vendas de uma torradeira redesenhada. “Eis uma categoria a ser observada”, diz Peter Greene, vice-presidente/gerente geral da NPD Houseworld. “Mais marcas com estilo comercial estão entrando na categoria. Elas estão as posicionando como um ‘forno de bancada’.”

“Novas apresentações continuarão a entrar no mercado a todos os preços. A continuidade da polarização do mercado – um afinamento da gama de produtos de preço médio – ajudará comerciantes de massa e varejistas especializados. Enquanto 50% dos aparelhos elétricos pequenos são vendidos em canais populares, as apresentações de ponta e a capacidade de fornecer atendimento individual aumentam as vendas no canal especializado.”

Usar “no longo prazo, tudo é torradeira” como uma metáfora apropriada para a comoditização tecnológica não é apenas reducionista; é errado. O mercado global de tecnologia de torradeiras de bancada é comprovadamente impulsionado pela diferenciação, segmentação e inovação técnica contínua. Empresas que não diferenciam, segmentam e inovam tendem a falhar.

O preço importa? Claro! Sempre! Mas, mesmo depois de mais de um século de competição e o recente surgimento da China como fabricante global de torradeiras, o preço não é _primus inter pares_ na determinação do sucesso do mercado. Torradeiras não são mais commodity do que carros, computadores ou roupas – a menos que a palavra “commodity ”, ironicamente, tenha sido retoricamente commoditizada em sem sentido.

Economia versus história

Esse breve conto da torradeira “commodity” lembra Ronald Coase, que, em 1974 desbancou o ganhador do Nobel Paul Samuelson em seu exemplo didático (e não muito exato) de faróis náuticos como um “bem público”. Desde 1964, o best-seller de Samuelson, _Economics,_ usava o farol como o símbolo de um bem essencial que o setor privado – em oposição ao setor público – não estava preparado para fornecer. “Seu raio ajuda todos à vista”, escreveu Samuelson. “Um empresário não poderia criar um farol náuticos para ter lucro, já que não poderia cobrar o uso de cada usuário”. 

Um cético Coase – que ganharia seu Nobel de economia em 1991 – olhou para o registro histórico em vez da análise teórica. O que ele descreveu em seu agora clássico artigo no _Journal of Law and Economics_ eram literalmente quatro séculos de exemplos bem-sucedidos de faróis ingleses construídos e administrados de maneira privada. Os empresários lucravam cobrando uma taxa aos navios que atracavam em portos próximos. A corporação Trinity House, até hoje responsável pelos faróis da Inglaterra, País de Gales, ilhas do Canal da Mancha e Gibraltar, foi seu principal exemplo; era uma organização privada que, em 1514, recebeu uma concessão para operar faróis e cobrar dos navios um preço pelo uso.

Onde Samuelson afirmou que os faróis tinham de ser financiados com dinheiro público, Coase observou que, de fato, esse financiamento não havia sido tentado na Inglaterra: “O serviço da Trinity House continuava sendo financiado por pedágios cobrados dos navios”. O registro histórico desafiou completamente a análise metafórica de Samuelson.

Mark Skousen, economista que fez a narração do duelo entre Nobéis da economia a respeito dos faróis náuticos, observou com veemência que, embora a crítica de Coase tenha aparecido em 1974, o livro de Samuelson não reconheceu sua existência – e muito menos sua validade – até a edição de 1994. E, quando isso foi feito, tratou-se de uma mera nota de rodapé.

A lição essencial desse episódio, para executivos e empresas de todo o mundo, é o entendimento de que a sabedoria econômica pode estar perigosamente em desacordo com fatos históricos conhecidos. E mais: tal conflito pode levar a decisões estratégicas terríveis e  grosseira ineficiência na alocação de recursos por empresários e investidores.

Isso é particularmente verdadeiro quando se revisa a história, a mitologia e a ideologia econômica da commodity. Pode-se argumentar que vários bens e serviços que foram declarados commodities deixaram de sê-lo após revisão. A história dos negócios – em oposição à teoria econômica – indica que os produtos atualmente definidos como commodities muitas vezes provam ser plataformas excepcionalmente convidativas para a inovação.

Por exemplo, a noção de água como commodity remonta ao paradoxo de “água e diamantes” de Adam Smith em _A Riqueza das Nações_. No entanto, embora a grande maioria do mundo industrializado desfrute de água potável relativamente barata e pura, um negócio de bilhões de dólares em água engarrafada obtém margens de lucro de dois dígitos.  É questionável dizer que as águas das marcas Evian e Dasani são menos commodities do que os microprocessadores AMD e Intel. No entanto, não há muitos investidores de valor fundamental, como Warren Buffett, afirmando: “No longo prazo, a água engarrafada é uma torradeira”.

Da mesma forma, a Starbucks  tornou-se um estudo de caso de escola de negócios ao transformar uma commodity percebidas como tal – o café – em um produto premium e lucrativo. A capacidade do Starbucks e de seus imitadores de diferenciar, segmentar e inovar com sucesso em torno dos grãos de café aparentemente contradiz a afirmação econômica de que a bebida – seja _tall_, _venti_ ou _grande_ – é um commodity facilmente substituível.

Entrevistas informais com executivos seniores da Scott Paper Co. e Procter & Gamble Co. revelam que nenhuma empresa administra papel higiênico como commodity. Há dados que mostram que os chamados papéis higiênicos “genéricos” e de “marca própria” do varejo, apesar dos preços bem mais baixos, não fizeram incursões significativas em sua participação no mercado. Apoiados por orçamentos de pesquisa e desenvolvimento relativamente grandes, esses produtos com uso intensivo de capital estão sendo constantemente aprimorados e empacotados. “É um negócio muito bom para nós”, diz um dos principais executivos da Scott Paper. “Não investimos nisso como um commodity”. Este artigo foi escrito bem antes da pandemia Covid-19 e, portanto, antes da explosão de demanda por papel higiênico.

Esses são exemplos óbvios, mas há outros, que vêm dos setores de petróleo, têxtil e bancário. A realidade convincente é que mudanças contínuas – sutis e profundas – nos negócios e nos requisitos tecnológicos se recombinam invariavelmente para alterar os cálculos corporativos do que constitui uma commodity. Afinal, o alcatrão de carvão era originalmente um produto residual das minas antes de se tornar o ingrediente essencial da indústria global de alta tecnologia em corantes sintéticos. Commodities de hoje podem ser a vantagem competitiva sustentável de amanhã. O futuro da inovação é desconhecido.

Quando uma commodity é uma commodity?

Isso não quer dizer que commodities e serviços básicos sejam mais raros que os unicórnios. Só que, como a torradeira ou o farol público de Samuelson, eles podem se mostrar mais ficção do que fato. Exatamente quando um empreendedor ou uma empresa sabe com confiança o que está vendendo e se tornou um commodity? Quando eles mesmos não são mais criativos ou inteligentes o suficiente para tornar sua oferta mais atraente? Ou quando eles estão confiantes que nenhum novo concorrente aparecerá? A história comercial sugere que a commodity é muito mais frequentemente um estado temporário do que uma condição permanente.

O perigo é que executivos, empreendedores e investidores comprem a designação de commodities com muito mais frequência do que deveriam e, portanto, se comportar como se o commodity fosse o destino. Assim como definir trabalho como despesa alternadamente convida e torna-se pretexto para um nível diferente de investimento do que vê-lo como um recurso, a atração fatal da ideologia do commodity é que ele se torna uma profecia auto-realizável. As empresas que acreditam que a inovação de hoje é a torradeira de amanhã compreensivelmente temem retornos cada vez menores dos seus investimentos em inovação. A economia da inovação “suficientemente boa” se torna boa o suficiente. O potencial das ideias é inerentemente subvalorizado. Oportunidades de inovação sustentáveis são perdidas ou descartadas.

Foi exatamente isso que aconteceu com o Yahoo! Inc. quando surgiu no outro lado da bolha da internet, em 2001. A empresa havia originalmente se intitulado como “o principal portal de pesquisa na web”, tornando a busca rápida, fácil e abrangente uma parte intrínseca de sua oferta ao cliente.

No entanto, mesmo quando o jovem Google Inc. atraiu a atenção da mídia e uma parcela crescente de tráfego na internet, a alta gerência do Yahoo! insistia, tanto publicamente quanto em conversas privadas,  que a busca era apenas uma fatia estreita de funcionalidade de um portal. De fato, a proliferação de algoritmos inovadores estava destinada a transformar a pesquisa em um serviço commoditizado com custos de troca sem atrito, disse um executivo do Yahoo do C-level quando o Google foi aberto, em 2004.

A alta gerência do Yahoo afirmou que “mídia” era um negócio maior e melhor que as buscas na internet, e a empresa investiu seus recursos de acordo com isso. Embora seja muito cedo para dizer que é improvável que a busca se torne uma commodity, uma dia não é injusto observar que 2004 era muito cedo para perceber uma tecnologia tão nova como uma commodity global. Ao enxergar o mecanismo de busca como uma torradeira a do artigo do _Financial Times_, o Yahoo não aprimorou seu foco estratégico; estreitou seu mindset de negócios.

O sucesso subsequente do Google dificilmente foi uma função da má percepção do Yahoo. No entanto, o Yahoo  subestimou os perigos do julgamento sobre o que é commodity. Recusar-se a competir porque você pode perder ou porque é muito caro é uma coisa; recusar-se a competir porque você acha que estará em um negócio de commodities é outra completamente diferente.

Pense na The Hoover Company, que já foi a marca dominante nos EUA em aspiradores de pó. Embora a empresa de Ohio fosse líder de mercado desde 1908, seus investimentos em inovação no produto principal refletiam uma aparente crença de que aspiradores de pó eram torradeiras. A Hoover continuou muito mais preocupada com a concorrência de preços do que com a diferenciação da inovação, mesmo quando os avanços técnicos se materializaram no exterior.

Quando o britânico James Dyson importou seu aspirador de pó Dual Cyclone para os Estados Unidos em 2002, ele já fazia grande sucesso no Reino Unido e no Japão. Após apenas dois anos nos Estados Unidos, os produtos de limpeza Dual Cyclone da Dyson capturaram quase 21% do mercado norte-americano, em dólares, à frente dos 15,6% da Hoover. O rápido sucesso de Dyson no mercado multibilionário surpreendeu porque veio mesmo quando a Hoover diminuiu os preços.

“Estamos emocionados com a rapidez com que nos tornamos os maiores da América”, disse executivo da Dyson a um jornal britânico na época. “Nosso preço médio de venda é de U$ 500, quando você pode comprar um aspirador de pó por apenas US $ 75.” No meio de uma guerra de preços, a máquina mais cara do mercado obteve o maior sucesso em uma indústria secular dominada por um líder de marca estabelecido.

Se Hoover ou um rival chinês um dia ultrapassarem a Dyson nos Estados Unidos, a história sugere fortemente que esse sucesso futuro não resultará de comportamentos gerenciais que tratam aspiradores de pó como commodities.

A mensagem dos preços baixos

Para uma Cisco, Sony, Apple, Dell, Infosys ou General Electric, acreditar que commodity é o destino seria uma traição às suas origens, histórias, investidores e – acima de tudo – clientes. As empresas orientadas para a inovação não têm medo de ser fornecedores de baixo custo em seus mercados; de fato, eles frequentemente investem em inovações de processos e produtos que os tornam melhores concorrentes de preços. No entanto, eles também entendem que o valor é um sinal de mercado que envia uma mensagem importante aos compradores e vendedores.

Que mensagem é essa? Para muitos economistas e empresas, o aumento da concorrência e a queda nos preços sinalizam que o poder de precificação diminui à medida que a capacidade de substituir aumenta. Mas há outra interpretação coerente com o história mundial dos negócios: a intensa concorrência de preços pode sinalizar não a presença prolífica de commodities substituíveis, e sim uma ausência árida de inovação única. O sinal do mercado é que o preço é o diferenciador mais importante do momento. Esse sinal apresenta um incentivo claro e presente para inovadores e empreendedores se modernizarem, a fim de se diferenciar; identificar potencial oculto ou inexplorado para criação de novo valor.

Isso é particularmente importante porque, em regra, a concorrência intensa e os preços em declínio atraem novos clientes para o mercado, que pensam tanto nos itens caros como nos acessíveis. Esses novos clientes costumam ter usos novos ou não convencionais para esses bens e serviços que, por sua vez, exigem respostas inovadoras próprias. A própria confirmação da concorrência transmutou a proposta de valor e o potencial da suposta commodity. Uma vez que os chips de computador ficam baratos, por exemplo, por que não colocá-los em torradeiras? Se os eletrodomésticos se tornarem “mais inteligentes”, por que não colocá-los em rede? Uma nova ecologia da inovação emerge. Essa é a antítese do commodity. 

Isso não quer dizer que a concorrência não torne as tecnologias inovadoras anacrônicas ou obsoletas. As inovações efetivamente distribuídas – Google, Yahoo e vastas matrizes de serviços digitais – nunca podem ser diferenciáveis com base no preço. Porém, quanto mais se olha de perto as chamadas commodities, mais o termo parece ser um  artifício retórico conveniente, e não uma descrição econômica precisa.

Na verdade, a história do contexto é tão importante quanto o contexto da história. A citação da torradeira de Greenwald é uma homenagem ao famoso aforismo de John Maynard Keynes: “No longo prazo, todos estaremos mortos.” No entanto, como costuma ser o caso, a citação completa no contexto histórico mostra-se muito mais reveladora e objetiva do que o proprietário pode ter pretendido: “Esse longo prazo é um guia enganoso para os negócios atuais”, escreveu Keynes originalmente em 1923. “No longo prazo, todos estaremos mortos”.

Commodity é um guia enganador da inovação atual. No longo prazo, nem tudo é torradeira. Ou torrada.

Crédito da imagem: Shutterstock

Michael Schrage
Michael Schrage é pesquisador sênior da MIT Sloan School of management e um dos maiores especialistas sobre a economia da inovação do MIT. Esteve no Brasil no segundo semestre de 2019 para participar do Frontiers #1, evento organizado pela revista MIT Sloan Review Brasil.

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