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O ponto cego de “O Dilema das Redes”

Reconhecendo a relevância do documentário, resenha traz à luz o que faltou discutir, como a questão de espaço público e privado, a falta de representatividade como causa do problema, o elitismo das soluções propostas

Fabro Steibel
29 de julho de 2024
O ponto cego de “O Dilema das Redes”
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Se ainda não o fez, você precisa assistir ao docudrama “O Dilema das Redes”, disponível na Netflix. O filme é montado a partir de depoimentos reais de “whistleblowers”, executivos que passaram pelas maiores redes sociais que conhecemos hoje. A tese geral é provocativa e séria: redes sociais viciam, foram desenhadas para viciar, e precisamos regular os efeitos delas antes que seja tarde. As evidências usadas para justificar os argumentos são relevantes, e devem ser consideradas. Há, contudo, um ponto central que merece sua atenção: na prática, o filme diz mais sobre como viemos parar aqui, e menos para onde devemos ir.

O “Dilema das Redes” sugere que há um problema na forma como redes sociais são construídas. Um problema, portanto, de miopia de design. Facebook, Twitter, Instagram e até mesmo aplicativos chineses (que não participam do filme, mas poderiam) foram desenhados, por um punhado de pessoas, para ganhar sua atenção. Ao serem idealizados e executados centrados no usuário, as plataformas se especializaram em atrair seu olhar e te manter conectado. A posição dos botões, o conteúdo a ser mostrado, as funções de “tagear” um amigo, todas as lições foram aperfeiçoadas para gerar a máxima experiência de prazer no indivíduo. E o resultado final seriam serviços que servem mais ao prazer individual do que à sociedade.

Há um paralelo implícito no filme com a série ficcional “Mad Men”, que também pode ser (re)vista na Netflix. Esse seriado, inspirado nas agências da Madison Avenue, de Nova York, mostra o surgimento da indústria de publicidade, uma indústria que se especializou em gerar valor intangível para bens tangíveis. Logo no primeiro episódio, por exemplo, o dilema do personagem principal é descobrir como anunciar Lucky Strike, um cigarro suspeito de causar câncer e que fracassa em se diferenciar dos demais. A solução encontrada pelos “Mad Men” é ignorar os desafios sociais (como a saúde) e focar no poder de escolha do indivíduo. Surge daí a estratégia de desenvolver universos de marca nos quais cowboys, montanhas e esporte são usados para influenciar não apenas a marca que se fuma, mas – se possível – incentivar o hábito de fumar.

Seriam as redes sociais o novo tabagismo? Esse é um questionamento que “O Dilema das Redes” expõe para nossa análise. A narrativa foca na capacidade das redes sociais de promover vícios e distúrbios, um atributo que os executivos convidados para dar depoimento afirmam ser parte do design do negócio. As redes surgiram com o objetivo de ganhar sua atenção, e de monetizar essa atenção com publicidade, oferta de serviços ou algo mais. Como diz um letreiro no filme, com um mote conhecido, “se você não paga pelo produto, o produto é você”.

É difícil não concordar que as redes sociais tenham sido criadas para ganhar sua atenção, até porque a competição entre elas por isso é feroz, o tempo de reflexão muito limitado para elas pensarem para onde vão.

Além disso, sabemos também que, nessa nova geração “Madison Avenue”, há o mesmo déficit de representatividade de gênero, classe e raça que existia na velha. Na indústria da publicidade, a concentração de homens brancos de classe alta levou a uma geração inteira de anúncios que reforçam estereótipos só agora questionados. Na indústria de tecnologia, fenômeno semelhante ocorre. Iniquidade entra, iniquidade sai. Some isso ao fato de serem empresas privadas, globais, e de tratarmos de bolhas que na bolsa já se mostraram frágeis, e temos nas redes sociais todos incentivos para praticar o modo “Game of Thrones” de ser.

Elitismo

Mas a pergunta que fica pulando no filme é: uma vez enxergados os elementos do problema, o que fazemos com isso? Uma das soluções proposta, por exemplo, é elitista: abandonar as redes sociais, sair delas para sempre. Hoje a internet se confunde com suas plataformas, o que é um problema. A internet, livre e aberta, nos permite crescer como sociedade. É na internet que obtemos conhecimento, socializamos, trabalhamos, e praticamos nossa cidadania. Há problemas e desafios? Sim. Porém mais internet é solução preferível a menos internet.

Como internet e redes sociais se confundem, sair das redes é – para muitos – sair da internet. E é aí que mora o elitismo. Deixar de ter um celular no bolso, e se desconectar, é um privilégio que poucos podem ter. Quem se desconecta ou paga alguém para ficar conectado, ou possui formas de gerar valor fora da rede. Ou são minorias de modos de vida. Sair das redes não é uma opção para maioria da população, nem deveria ser. Inclusive, quase um terço dos brasileiros nem na internet está – eis a distância entre a solução de desconectar as redes sociais e a necessidade de refletir sobre como ter redes sociais presentes entre nós.

Outro problema de criticar as redes sociais é ignorar as soluções que elas trazem. O Youtube por exemplo, justamente por ser uma rede social, permitiu surgir uma diversidade de produtores de conteúdo que tem variedade de raça, gênero, sexualidade, religião, regionalidade e tantos outros fatores que mostrou a obsolescência de anos de briga por diversidade na TV aberta ou TV a cabo, e em como políticas afirmativas de tela no cinema produzem resultados lentamente.

O Whatsapp reduziu o custo de ligação entre famílias, em um país de migrantes e desigual como o nosso, e, por causa dele, hoje as famílias estão mais próximas do que nunca. O Instagram fomentou pequenos e médios empresários a pensar em economias circulares e estimulou mercados sustentáveis, e o Facebook produziu formas de jornalismo comunitário tão fortes, que temos milhares de páginas produzidas e consumidas na favela, com conteúdo noticioso local, algo antes inexistente. Todos esses são fatores positivos das redes sociais que devemos reconhecer e celebrar. E eles convivem com os pontos de atenção identificados em “O Dilema das Redes”.

Praça pública ou shopping center

As redes sociais, hoje sabemos, foram desenhadas para serem otimizadas para o uso de  indivíduos. Criamos redes que são potencialmente inflamatórias, tóxicas e que possuem relações bipolares. Revelam, ao mesmo tempo, o melhor e o pior da sociedade. E ter isso em mente é importante para, ao acabar de ver o filme, você se perguntar que caminho devemos tomar.

No Direito existe uma dicotomia que pode nos ajudar nisso: a relação entre praça pública e shopping center. Na doutrina americana, esses dois lugares são usados na reflexão sobre liberdade de expressão: será que temos o direito de nos expressar com a mesma liberdade em lugares públicos e na lugares privados? No Brasil usamos a mesma dicotomia para refletir sobre nossas liberdades, vide por exemplo a restrição (ou não) da prática de “rolezinhos” em supermercados e lojas, ou em como julgamos a responsabilidade de seguranças que agem com força contra humanos ou cachorros.

Seriam as redes sociais espaços públicos, como as praças de cidades? Ou ela seriam espaços privados, como os shopping centers? Seriam as redes sociais locais onde devemos pensar com a Constituição na mão? Ou devemos portar nelas o Direito Civil, reforçando o caráter libertário de negócios privados nos quais o Estado tem limites de intervir? Reflita você: as redes sociais devem ser reguladas para servir ao interesse público, ao interesse privado, ou aos dois?

A dicotomia entre praça pública e shopping é interessante porque, no começo, nem a praça nem o shopping foram pensados para serem lugares públicos. Os parques que hoje conhecemos em cidades europeias, como o Hyde Park de Londres ou o Jardim de Luxemburgo em Paris, não foram criados para serem públicos. Pelo contrário: foram espaços criados para servir a monarquia local, que lá praticava caça. Eram espaços criados como espaços de lazer restrito, uma miopia da época. Com as revoluções e muita reflexão sobre o espaço público, os parques se tornam públicos, propriedade de todos. Mas, no início, mesmo eles eram privados.

Os shoppings centers seguiram miopia semelhante, tanto que, em países segregados racialmente, tinham entradas distintas de acordo com a cor da pele.

A dificuldade que temos em pensar redes sociais hoje é admitir que ainda não entendemos o que esses espaços são, nem como regulá-los. O filme “O Dilema das Redes” nos mostra que devemos refletir mais sobre as redes sociais, mas deixa como ponto cego o fato de que as alternativas de como regular as redes são ainda pouco claras.

Sobre a desinformação

Se queremos resolver o problema da desinformação, precisamos considerar que a Revolta da Vacina aconteceu há mais de um século atrás, e que a epidemia de meningite, na década de 1970, aconteceu por vontade do governo de ignorar a comunicação de uma crise de saúde. Esses dois eventos acontecem antes da pandemia do coronavírus, antes das redes sociais, e nos mostram quão complexo é pensar saúde, sociedade e governo.

Temos um problema de desinformação nas redes sociais hoje? Sim. Mas o consumo de notícias de fontes confiáveis quase dobrou durante o período. Onde? Nas redes sociais. É um problema complexo.

Quem deve regular as redes sociais? Governos autoritários ou governos democráticos? E qual a diferença entre eles, pulando a parte do que diz a Constituição? Usaremos regras de direito concorrencial para pensar redes sociais como monopólios, fazendo paralelos com o modo como regulamos no passado o mercado financeiro? Ou consideramos as características do mercado de dados, no qual a concentração de recursos incentiva a inovação escalável?

Vamos tratar moderação de conteúdo como a identificação do inadmissível (como retirar imagens de pedofilia da rede)? Ou vamos focar a moderação no que é moralmente diverso, como retirar ou não influencers mirins usando salto alto do Netflix?

Problema e solução

As redes sociais são hoje parte do problema, e parte da solução. Nunca consumimos tanta informação jornalística, nem tivemos contato com tantas realidades da cidade, nem acesso tão transparente ao que o governo faz.

Todas essas afirmações talvez pareçam contrárias ao que você define como “o novo normal”, mas você precisa lembrar que não viemos de um passado glorioso, e sim de uma realidade na qual democracias são recentes, na qual o índice de desenvolvimento humano cresce década após década, e na qual a escala de desafios que temos hoje é em muito superior ao que conhecíamos anteriormente (somos hoje 7 bilhões de pessoas).

“O Dilema das Redes” nos apresenta uma realidade ácida, verídica e necessária. Mas não nos apresenta uma resposta. Entender a miopia do passado nos ajuda a refletir sobre o desenho de redes sociais que queremos. Entendemos que criamos soluções globais focadas no indivíduo e na sociedade. Entendemos que os governos precisam participar das decisões, e que a sociedade civil e a academia devem entrar nisso também, mas ainda não sabemos como realizar essa governança compartilhada.

A verdade é que somos mais eficientes em criar tecnologias do que em entender como elas nos afetam. É assim com o uso do petróleo, com os agrotóxicos e com a edição genética.

É fato que precisamos compreender as redes sociais como elas foram (ou têm sido) para saber o que elas podem ser. Mas, para fazer isso, precisamos do debate dentro e fora das redes sociais. E é nisso que mora o real dilema das redes: para onde ir, agora que sabemos, um pouco, de onde viemos.”

Fabro Steibel
Diretor-executivo do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS-Rio), Fabro Steibel é membro do Conselho Global do Fórum Econômico Mundial, pesquisador independente da Open Government Partnership, fellow da Organização dos Estados Americanos (OEA) para governos abertos, professor da inovação da ESPM e membro do conselho editorial da MIT Sloan Review Brasil.

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