Por que não estamos preparados para expor e debater assuntos íntimos nas mídias sociais sem afetar nossa saúde mental
De acordo com Andrew Bustamante, ex-agente secreto da CIA, o serviço secreto americano tem como uma das tarefas mais importantes ensinar seus agentes a influenciar decisões dos seus interlocutores para obter informações críticas em benefício dos interesses nacionais americanos.
Em seu mais recente livro, “Red Cell: An Insider Account of America’s New Spy War”, Bustamante revela o conceito da entidade sobre a vida em sociedade. “Vivemos três vidas concomitantes: a pública, a privada e a secreta, e nossa tarefa é claramente chegar perto da vida secreta das pessoas”.
O que se pede que os agentes da CIA façam não é exatamente uma atitude das mais civilizadas, uma vez que a ideia por trás da manipulação é a de construir vínculos fortes e próximos para fins escusos, ou seja, entrar com tudo na esfera da vida secreta das pessoas para navegar livremente sobre as informações alheias desejadas. A teoria da CIA, na prática, prova-se eficaz.
Afinal, mora na vida secreta das pessoas toda sorte de informação. É um território que está na esfera da vulnerabilidade humana, constituído por nossos valores estruturantes enquanto indivíduos. É uma espécie de santuário pessoal, por isso, imaculado ao escrutínio público.
> Parece que estamos lidando demais com questões da vida secreta de cada um de nós nas redes. Seria essa uma condição aceitável para nossa psique?
Dados íntimos, desejos materiais e espirituais, repressões e traumas sofridos por nós, vergonhas passadas que não queremos relembrar, alegrias incomensuráveis e experiências mais profundas. Toda essa lista de fortes eventos fica guardada em nossa vida secreta.
Para nós, psicanalistas, a teoria da agência de espionagem é conceitualmente rasa, mas ainda assim nos faz entender a dinâmica que está por trás do jogo da persuasão e da manipulação, que é mexer com a vida secreta das pessoas. E dá uma dica inequívoca de que as redes sociais, mexendo com assuntos secretos, íntimos e pessoais, podem estar num território perigoso para a saúde mental de todos nós.
Os movimentos sociais que tentaram modificar a pauta de costumes vigentes optaram pela forma mais disruptiva, em suas épocas, para alcançar seus objetivos. O movimento hippie, o feminismo, o movimento Black Power e o movimento LGBTI+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Intersexuais e outros) se afirmaram como grupos atuantes na sociedade porque desafiaram os paradigmas e as estruturas sociais estabelecidas e se fizeram notar.
Trataram de desafiar a até então impecabilidade, perfeição e funcionalidade das famílias de suas épocas pela realidade sem filtro de famílias disfuncionais do mundo real, explicitando que perfeição mesmo só existe no dicionário.
É inegável que esses movimentos tiveram a virtude de transferir valor da vida privada para a vida pública, ou seja, explicitaram para opinião pública que o que acontece debaixo do teto de uma casa é o que a vida de fato representa. Isso levou a sociedade a uma reflexão e em alguns casos até a aceitação sobre assuntos dos mais espinhosos.
> As plataformas de mídias sociais estão se tornando depósitos das intimidades humanas “a céu aberto”, uma espécie de depósito de terceirização da nossa vida secreta.
Estamos falando da gestão do binômio da vida pública e da vida privada, por mais que essas questões afetem nossas vidas secretas, diferentemente do que fazem os espiões da CIA, profissionais que não sentem pudor em entrar nas entranhas de nossa psique.
Não é necessário muito esforço para identificarmos um papel relevante das mídias sociais na dinâmica de nossa mente e dos nossos pensamentos. Assim como nos aprendizados de Bustamente, parece que estamos lidando demais com questões da vida secreta de cada um de nós nas redes. Seria essa uma condição aceitável para nossa psique?
São pelo menos dez anos – por que não dizer 20, se contabilizarmos a rede Orkut – convivendo em rede pelas mídias sociais. Assim como os movimentos sociais lá atrás, a crescente influência das redes na vida contemporânea tem gerado profundas transformações nos costumes e comportamentos da sociedade.
O uso exagerado das redes sociais causado pelo medo de ficarmos isolados ou de perdermos visibilidade pública é extremamente danoso, vicia e até já ganhou nome na psicologia cognitiva: nomofobia, muito embora a Organização Mundial da Saúde (OMS) ainda não a tenha classificado como doença.
O viés de bando, uma heurística mental poderosa, amplamente estudada na Economia Comportamental, tem atuado fortemente e em escala nos dias atuais, levando cada vez mais usuários a compartilhar suas atividades e questões mais íntimas em posts e cortes bem editados nas redes.
> Não estamos equipados para lidar sozinhos com esses problemas profundamente enraizados em nosso inconsciente, ainda mais em um curto espaço de tempo.
Essa dinâmica, impulsionada pela constante exposição e julgamento nas redes sociais, pode levar a um desequilíbrio psíquico importante na forma como lidamos com nossas debilidades e diferenças, transformando assuntos da vida secreta em um debate público.
As plataformas de mídias sociais estão se tornando depósitos das intimidades humanas “a céu aberto”, uma espécie de depósito de terceirização da nossa vida secreta. Pior, estão transformando as emoções em “coisificações”, commodities intercambiáveis por likes e reposts.
Explorar por que as redes sociais se tornaram uma fonte de desconforto para muitos é uma tarefa complexa. No cerne dessa questão está uma verdade perturbadora: as redes sociais expõem e agravam involuntariamente nossas feridas internas.
Frequentemente somos compelidos a testemunhar e nos engajar com as lutas pessoais dos outros, o que nos força a confrontar nossas próprias vulnerabilidades. Essa exposição não nos fortalece; ao contrário, corrói nossa resiliência.
Não estamos equipados para lidar sozinhos com esses problemas profundamente enraizados em nosso inconsciente, ainda mais em um curto espaço de tempo. A gestão das questões inconscientes requer a presença de um profissional, numa análise de longo prazo ao longo de meses ou até anos.
> Frequentemente somos compelidos a testemunhar e nos engajar com as lutas pessoais dos outros, o que nos força a confrontar nossas próprias vulnerabilidades.
Nossos mecanismos de defesa não são projetados nem para lidar com o que lemos, tão pouco para digerir todo o volume de posts desta ordem de coisas; ao contrário, são ativados gatilhos emocionais no momento em que deparamos com eles.
No final, o que resta é uma espécie de resíduo psíquico que não conseguimos identificar facilmente. Uma espécie de desconforto indefinível que vai gradualmente preenchendo nosso inconsciente, causando danos psíquicos sem que estejamos cientes disso.
Em essência, o desconforto e o mal-estar trazidos pelas redes sociais são uma forma de sofrimento silencioso. É uma ausência de dor consciente que afeta insidiosamente nossa saúde mental, nos adoecendo lentamente sem que percebamos a causa.
É essencial que reconheçamos e questionemos o impacto da sociedade do espetáculo em nossas vidas. Precisamos cultivar espaços de autenticidade e vulnerabilidade, tanto online como offline, onde possamos enfrentar nossas feridas internas com compaixão e apoio.
A cura e o fortalecimento de nossa saúde mental demandam uma mudança de foco: menos exposição e julgamento, mais introspecção e conexão verdadeira. Esse é o caminho para mitigar os danos psíquicos causados por uma cultura obcecada pela imagem e pela aprovação superficial.