A prática ainda não é massivamente popular entre os médicos radiologistas, mas a crescente participação da inteligência artificial na medicina diagnóstica torna mais relevante e urgente o uso desse tipo de laudo
Durante o trabalho de um médico radiologista é possível distinguir claramente duas etapas: a primeira é a interpretação das imagens do exame, diretamente ligada ao diagnóstico. A segunda fase, igualmente crucial, é a transmissão adequada dos resultados ao médico solicitante e ao paciente através de um laudo (relatório). A competência em uma dessas fases não significa necessariamente competência na outra. E é sobre essa segunda etapa, a da elaboração do laudo, que discorre este artigo.
A complexidade da radiologia diagnóstica aumentou drasticamente nas últimas décadas. Os médicos radiologistas enfrentam o desafio de correlacionar e integrar quantidades cada vez maiores de dados radiológicos, clínicos e laboratoriais. Mas notavelmente, apesar de tantas mudanças, o formato dos laudos radiológicos permaneceu relativamente inalterado neste mesmo período. A maioria dos laudos de exames diagnósticos ainda se baseia em texto livre, ditado ou digitado pelo radiologista.
Para superar as limitações do laudo em texto livre e melhor adaptar-se à crescente demanda de informações, diversas soluções têm sido propostas. Uma delas é o conceito de laudo estruturado (structured reporting, em inglês), que nada mais é que a geração do relatório usando um conjunto predefinido de itens organizados em uma sequência lógica e hierarquizada. De forma simplificada, o laudo estruturado permite ao radiologista criar os relatórios seguindo modelos padronizados com todos os itens relevantes para a região do corpo e o tipo de exame que está sendo examinado. Isso pode ser feito através de templates de texto onde o radiologista preenche lacunas e assinala itens (laudo com “layout estruturado”) ou através de interfaces gráficas informatizadas nas quais os itens são selecionados através de caixas de checagem e menus dropdown (suspenso, na tradução), sem qualquer digitação de texto (laudo com “conteúdo estruturado”).
O conceito de laudo estruturado não é algo novo. Ele surgiu na década de 90, mas só começou a ganhar tração nas décadas seguintes. Atualmente a adoção do laudo estruturado é estimulada pelas principais sociedades internacionais de radiologia. A Sociedade de Radiologia da América do Norte (RSNA, na sigla em inglês), por exemplo, disponibiliza modelos de relatórios desde 2008 em uma biblioteca gratuita online.
Dentre seus inegáveis benefícios, o uso do laudo estruturado melhora a eficiência, a consistência e a reprodutibilidade do relatório radiológico. Vários estudos alegam que laudos estruturados são menos sujeitos a erros e são gerados mais agilmente em comparação a laudos de texto livre. Além disso, tendem a ser preferidos pelos médicos solicitantes em razão da sua maior clareza e objetividade. A Sociedade Europeia de Radiologia (ESR, na sigla em inglês) define que qualidade, datificação/quantificação e acessibilidade são os principais diferenciais do laudo estruturado em relação ao convencional. Como exemplo, o uso de laudos estruturados representa um grande aliado no levantamento subsequente de dados estatísticos em ambientes clínicos e de pesquisa. Além disso, a adoção do laudo estruturado facilita a avaliação de indicadores uma característica fundamental da medicina baseada em evidências é a capacidade de avaliar a qualidade. Um estudo publicado em janeiro de 2020 no Journal of the American College of Radiology (JACR) concluiu que “(…) o laudo estruturado padronizado resultou em ganhos econômicos e economia de tempo do radiologista”. Em outras palavras, a adoção do laudo estruturado economiza tempo e dinheiro.
Mas, com tantos benefícios óbvios, por que o laudo estruturado ainda não é massivamente popular entre os radiologistas?
O fato é que apesar dos anos de esforço conjunto das sociedades internacionais, o uso disseminado do laudo estruturado ainda não é uma realidade, mesmo em países desenvolvidos. Embora a adoção tenha sido relativamente bem sucedida em algumas áreas específicas como a TC e a RM, em especial na neurorradiologia, o mesmo não pode ser dito quanto a outras modalidades da radiologia.
Parte do motivo pode ser explicada pela relativa escassez de ferramentas de software de qualidade. Há muitas plataformas com suporte a laudo estruturado no mercado, mas a maioria usa abordagens menos sofisticadas do tipo “layout estruturado”, em lugar de sistemas com interfaces automatizadas de conteúdo estruturado, que são mais ágeis e eficientes. Apesar disso, existem plataformas maduras de laudo estruturado lançadas por empresas estrangeiras há mais de 10 anos, mas que ainda assim não conseguiram se popularizar.
Presume-se que alguns obstáculos para a adoção do laudo estruturado possam ser fatores puramente humanos: vários radiologistas veem a redação livre de laudos radiológicos como uma forma de distinção profissional e resistem às tentativas de padronização. Isso seria particularmente verdadeiro entre radiologistas de faixas etárias mais altas. Outro fator humano relevante seria a baixa familiaridade de parte da comunidade médica ao uso de ferramentas tecnológicas. Focando justamente na variável humana do problema, um artigo recente do periódico RSNA News, de julho de 2021, abordou a importância de proporcionar acesso facilitado a conceitos de laudo estruturado a médicos radiologistas durante seus anos de formação e especialização.
Talvez falte ainda uma maior conscientização da classe médica quanto aos amplos benefícios que o laudo estruturado pode fornecer, particularmente na forma de padronização sem comprometimento da capacidade de comunicar descobertas e opiniões qualitativas.
Desenvolver ferramentas de laudo estruturado acessíveis e eficientes, que aumentem perceptivelmente a eficiência do médico radiologista, continua sendo o maior desafio para o aumento da popularidade do método. E tendências recentes como a crescente participação da inteligência artificial na medicina diagnóstica tornam ainda mais relevante e urgente a ampla adoção do laudo estruturado, considerando-se a óbvia sinergia entre as duas abordagens. É de se esperar que em breve, mesmo que em ritmo mais lento que o previsto inicialmente, o uso do laudo estruturado finalmente se torne uma metodologia predominante.
Artigo escrito em parceria com Rogério Ribeiro, médico radiologista, com especialização pelo INRAD-HCFMUSP, e idealizador da plataforma Turing, de laudos estruturados.“