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Inteligência Artificial

11 min de leitura

Um MVP de inteligência artificial

Para ter sucesso, um projeto piloto de IA precisa ir além dos requisitos básicos dos projetos de TI tradicionais

Thomas H. Davenport e Rudina Seseri

05 de Março

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Artigo Um MVP de inteligência artificial

Dois dos atributos principais da abordagem de “lean startup” popularizada por Steve Blank e Eric Ries são o desenvolvimento e o refinamento de um produto mínimo viável (MVP, na sigla em inglês) que chame a atenção do cliente e do investidor sem implicar altos gastos. Definido originalmente pelo tecnólogo Frank Robinson, um MVP pode não atender a todas as necessidades dos clientes, mas oferece recursos suficientes para que aqueles que ficarem muito interessados possam aderir. É isso se tornou padrão no desenvolvimento de produtos de tecnologia.

Porém, o que significa MVP quando falamos em inteligência artificial? Essa é uma pergunta relevante não só para startups, como também para grandes empresas. Muitas organizações estão desenvolvendo pilotos de IA em diferentes áreas de negócios, esperando demonstrar o valor potencial da IA internamente para, um dia, implementá-la de fato na produção. Um protótipo MVP para uma organização grande tem muitas semelhanças com um piloto ou uma prova de conceito.

Então, para começo de conversa, qualquer companhia que invista em IA tem de entender o que é um MVP de sucesso nessa área. É igualmente importante que uma firma de venture capital com empresas de IA no portfólio – como a Glasswing Ventures, com a qual ambos estamos envolvidos – compreenda o que é um MVP de IA e o que é necessário para melhorá-lo. Com base em várias startups investidas pela Glasswing e em outras que pesquisamos, diríamos que, apesar de alguns dos atributos necessários serem iguais aos de todos os outros produtos de TI, os protótipos de IA também devem atender a requisitos únicos para serem considerados MVPs. (Alguns tributos comuns a TI: ser úteis desde o estágio inicial, ter seu uso pelos consumidores monitorado visando melhorias, e poder ser desenvolvidos de modo relativamente rápido e barato.)

Dados e MVP

Hoje a aplicação mais usual entre as que estão sob o guarda-chuva de IA, o machine learning é aprimorado com uma quantidade copiosa de dados. E ML do tipo “aprendizado supervisionado”, de longe o mais comum em empresas, exige dados com resultados agrupados. Assim, dados talvez sejam os recursos mais críticos para um produto de IA, e são necessários mesmo no estágio de MVP. Sem dados, não há algoritmo treinado de machine learning.

Portanto, qualquer pessoa que quiser criar um MVP de IA deve ser capaz de responder às perguntas abaixo, e investidores ou patrocinadores de empresas também precisam fazê-las:

• Seus modelos iniciais dependem de que conjuntos de dados para ser treinados? • Você já tem data suficiente para treinar um modelo relativamente eficaz? (Mais adiante, veremos por que “relativamente eficaz” pode ser um conceito amplo.) • Os dados usados para treinar seus modelos são “proprietários”, ou seja, de propriedade sua? • Por qual nível de integração, limpeza e outras atividades seus dados têm de passar antes que possam ser úteis para o treinamento? • Você imagina que em algum momento haverá data adicional para melhorar os seus modelos?

Os próprios modelos ou algoritmos de machine learning estão se tornando um tanto comoditizados. Um fornecedor de software de automatização de machine learning, o DataRobot, anunciou que criou mais de 1 bilhão de modelos (embora nem todos estejam em uso, é claro). Os dados, porém, continuam sendo um recurso mais desafiador; afinal, talvez seja necessário muito esforço para limpar, integrar e transformar todos eles em formatos utilizáveis. E se a fonte de dados usada por um produto inicial de IA minimamente viável estiver disponível para todos, como no caso do banco de dados ImageNet de imagens categorizadas? Nesse caso, é bastante improvável que a fonte forneça muita vantagem competitiva.

Um exemplo de dados proprietários valiosos são as informações usadas pela Armored Things, startup do portfólio da Glasswing. Os clientes da Armored Things são grandes espaços para eventos e campi universitários que buscam melhorar a segurança física, as instalações e o gerenciamento de operações. A IA da empresa combina dados de vídeos, wi-fi, fechaduras digitais e outros sensores em uma “camada de inteligência espacial” na construção de uma plataforma de inteligência coletiva em tempo real. Esse conjunto de dados exclusivo é vital para tornar visível o modo como as pessoas usam os espaços físicos e se movem por eles, e ajudou a oferta dessa jovem empresa a adquirir o status de MVP.

O time de futebol Los Angeles FC, dos EUA, está trabalhando com a Armored Things para entender em tempo real o fluxo de torcedores e tomar decisões mais inteligentes sobre densidade da multidão, higienização e segurança para o estádio de 22 mil lugares do clube, um dos espaços mais tecnológicos para esportes profissionais. Essa tecnologia é crucial conforme os fãs começam a retornar aos eventos esportivos após a paralisação causada pela pandemia de Covid-19. Análise de dados e ações rápidas são essenciais para construir confiança e oferecer uma experiência segura para os torcedores.

Inteligência além de dados e algoritmo

Apenas machine learning – e especialmente deep learning – não é suficiente para criar uma IA eficaz, mesmo quando aliada a dados proprietários limpos. Soluções de machine learning para problemas envolvendo tarefas perceptivas (fala, visão), controle (robótica) e previsão (planejamento de demanda do cliente) variam muito quanto à flexibilidade e à complexidade.

Os produtos em fase inicial de IA precisam se concentrar nas quatro áreas a seguir para atingir o mínimo de viabilidade.

1 - Os MVPs de IA podem precisar de modelos híbridos complexos. Desafios como modelar o diálogo humano, que são difíceis por conta da falta de dados devido à quantidade limitada de informação disponível, provavelmente não serão resolvidos com abordagens de força bruta. Nesses casos, pode ser mais prático, quando se pretende criar um MVP, usar soluções híbridas que combinem deep learning com uma modelagem de conhecimento a priori e argumentações lógicas baseadas em regras. Essas soluções de IA são menos complexas, exigem menos dados do que o deep learning e oferecem maior transparência. Tais algoritmos híbridos são bastante difíceis de encontrar, então é importante que os fundadores considerem as implicações que a pesquisa exploratória associada exige.

Por exemplo, a Cogito usa inteligência artificial para melhorar o atendimento do call center, interpretando cerca de 200 dicas comportamentais verbais e não verbais nas conversas dos agentes. Isso inclui volume, intensidade, consistência, tom, ritmo, tensão e esforço da voz. A ferramenta envia sinais em tempo real para funcionários humanos a fim de orientá-los a falar com mais confiança e empatia, para que consigam fazer seu trabalho com uma qualidade superior.

Como disse o CEO da Cogito, Joshua Feast, o software “ajuda as pessoas a serem mais carismáticas na conversa”, o que resulta em maiores índices de satisfação do cliente (28% mais altos, de acordo com uma pesquisa), tempos médios de ligação mais curtos e menos casos em que os clientes chamam o supervisor. A solução híbrida de processamento de linguagem por meio de machine learning combinada com a detecção de sinais sociais cria recomendações significativamente melhores do que cada uma dessas tecnologias criaria sozinha.

2 - Os pilotos de produtos minimamente viáveis de IA precisam demonstrar potencial de integração. A maioria das organizações não quer usar um aplicativo separado de IA, portanto uma solução nova deve permitir integração fácil com os sistemas de registro existentes, normalmente por meio de uma interface de programação de aplicativo. Isso permite que as soluções de IA se conectem aos registros de dados existentes e se combinem com os sistemas transacionais, reduzindo a necessidade de mudança de comportamento.

A Zylotech, outra empresa da Glasswing, aplica esse princípio a sua plataforma de autoaprendizagem de dados de clientes B2B. A organização integra dados de clientes em plataformas existentes e as enriquece com um conjunto de dados proprietários sobre o que os clientes viram e compraram em outros lugares, além de fornecer insights e recomendações inteligentes sobre as próximas melhores ações para as equipes de marketing, vendas, dados e atendimento ao cliente. A solução é projetada especificamente para complementar os pacotes de software que os clientes já possuem, minimizando o provável atrito de implementação.

Outro exemplo de integração é a Verusen, plataforma de otimização de estoque que também está no portfólio da Glasswing. Devido à existência no mercado de players consolidados de grande porte voltados ao planejamento de recursos empresariais, foi essencial que a plataforma se integrasse a tais sistemas. A Verusen reúne dados existentes de estoque e fornece suas recomendações geradas por IA sobre como conectar dados díspares e prever necessidades futuras de estoque sem exigir mudança significativa no comportamento do usuário.

3 - Os produtos minimamente viáveis de IA devem apresentar evidências de que conhecem a área específica em que vão atuar. Isso tem a ver com o potencial da integração: compreender como uma solução vai se adequar aos ecossistemas verticais e aos workflows existentes é absolutamente fundamental. Por exemplo, sem essa compreensão, muitos aplicativos de atenção à saúde por IA (tais como assistentes de diagnóstico) de boa qualidade acabariam empoeirando na prateleira porque simplesmente não se adaptam bem à rotina do médico.

Um MVP precisa resolver um problema específico da empresa ou do consumidor, e para isso é importante que a equipe tenha conhecimento específico do problema em questão. A ClimaCell, um centro de inteligência meteorológica, é um exemplo excelente desse tipo de plataforma. A equipe da ClimaCell obteve informações de satélites, sinais de wi-fi, aviões, câmeras de rua, carros conectados, drones e outras fontes eletrônicas de dados para fornecer previsões meteorológicas rua a rua, minuto a minuto, com até seis horas de antecedência (e previsões menos relacionadas a um momento específico com até seis dias de antecedência).

As “microprevisões meteorológicas” sob demanda da ClimaCell ajudaram organizações como Uber, Ford, National Grid e o time de futebol americano New England Patriots a melhorar sua prontidão e a fornecer detalhes e serviços melhores aos clientes. 4 Os MVPs de IA precisam gerar valor a partir do dia zero. Os aplicativos de IA geralmente melhoram com o tempo e com dados adicionais. No entanto, ao desenvolver um produto de IA minimamente viável, é importante pensar no primeiro cliente e em como agregar valor a partir do dia zero.

Isso pode exigir um foco inicial na limpeza da data do consumidor para construir um conjunto de dados que possa ser utilizado pelo produto de IA, treinando modelos desde o início com conjuntos de dados públicos, implementando uma abordagem que envolve o humano e que valida respostas iniciais com baixa confiança, ou implementando tecnologias baseadas em regras. Os desenvolvedores do MVP precisam garantir que os clientes se tornarão os maiores defensores da empresa.

Um produto mínimo viável requer um desempenho mínimo viável

Também é importante levar em consideração outro MVP, a performance mínima viável. Dada a tarefa, quão bem o produto deve funcionar para ser útil? A resposta ao problema é específica, tanto em termos da métrica relevante quanto do nível de performance exigido. Em algumas aplicações, ter 80% de sucesso no Dia Zero pode representar uma melhoria grande e valiosa na produtividade ou na redução de custos. Em outras aplicações, porém, 80% no Dia Zero pode ser algo totalmente inadequado, como no caso de sistemas de reconhecimento de voz.

O objetivo é superar a referência base, não o mundo inteiro. Um bom padrão pode ser simplesmente perguntar: “Como um produto de IA mínimo viável pode melhorar o status quo?”. Mesmo as grandes empresas de software precisam fazer essa pergunta. Na Salesforce.com, os modelos de propensão de vendas, que preveem quais clientes e leads têm probabilidade de reagir às várias atividades de vendas, estavam entre as primeiras ferramentas desenvolvidas com o produto de IA da companhia, o Einstein. Foi fácil adicionar essa ferramenta porque todos os dados já estavam na nuvem da Salesforce, e os modelos preditivos de machine learning tinham uma tecnologia familiar para a equipe de vendas que usaria essas informações. Até mesmo uma classificação imperfeita de que clientes devem ser contatados será melhor do que a intuição sem embasamento de um vendedor.

Uma boa ideia para um produto minimamente viável de IA também é oferecer suporte a processos de negócios “mais fáceis”. No caso da Verusen, a empresa concentrou sua ferramenta na gestão do estoque de peças, que normalmente é feito de maneira ad hoc. Ao estruturar e melhorar esse processo, a Verusen conseguiu gerar uma economia de milhões de dólares para cada um de seus primeiros clientes.

O PENSAMENTO ORIENTADO POR MVP é importante para qualquer tipo de sistema, e a IA não é uma exceção – por mais que ela pareça ser uma tecnologia tão incrível que dispensa isso. Os usuários podem usar um produto de IA minimamente viável sem grandes gastos de tempo ou dinheiro, e ele pode ser aprimorado com o feedback dos primeiros clientes. Com esse tipo de pensamento, produtos e aplicações internas podem migrar suavemente de capacidades úteis-mas-básicas para o status de ofertas verdadeiramente transformadoras.

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Autoria

Thomas H. Davenport e Rudina Seseri

Thomas H. Davenport é professor de gestão e tecnologia da informação do Babson College, professor visitante da Säid School of Business da University of Oxford, fellow da MIT Initiative on the Digital Economy e consultor sênior sobre a prática de analytics e IA da Deloitte. Rudina Seseri é fundadora e sócia-gerente da Glasswing Ventures.

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