O que o inovador formato de eventos musicais online transmitidos ao vivo fez este ano foi uma espécie de MVP: artistas e patrocinadores lidaram com as restrições e parecem ter achado um bom caminho a trilhar, em conformidade com leis e normas éticas
Durante a pandemia da Covid-19, as transmissões ao vivo realizadas por artistas via internet – as chamadas “lives” – tornaram-se verdadeiro fenômeno, inclusive no Brasil. Com o fechamento de setores do comércio em muitas cidades e estados, o público passou a buscar na internet alternativas de entretenimento, consolidando as lives como forma de acesso a conteúdo artístico.
Em algumas semanas, dezenas de músicos passaram a realizar performances via Internet diariamente e, pouco tempo depois, surgiram superproduções transmitidas a partir de estúdios ou mesmo das suas residências, com cenários cuidadosamente elaborados e patrocínio de grandes marcas – notadamente de bebidas alcoólicas.
Esse tipo de patrocínio a artistas musicais já ocorria corriqueiramente por meio da inclusão de imagens de bebidas alcoólicas em clipes musicais ou de anúncios em shows ao vivo. A consolidação das lives aumentou, no entanto, o alcance desse formato publicitário e acarretou maior escrutínio por parte do público e, claro, das autoridades e do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (“Conar”).
Do ponto de vista jurídico, a Lei nº 9.294/1996 regulamenta as restrições ao uso e propaganda de bebidas alcoólicas e mais algumas categorias de produtos. A definição de bebida alcoólica estabelecida por essa norma compreende apenas aquela com teor alcoólico superior a 13 graus Gay Lussac – não se aplicando, assim, a propagandas de cervejas.
Além disso, como não se vislumbrava à época da edição da Lei nº 9.294/1996 todo o potencial de marketing da internet, suas disposições dizem respeito primordialmente a propagandas veiculadas pela televisão e pelo rádio. De maneira mais genérica, a norma determina que as propagandas devem conter advertência sobre os malefícios das bebidas alcoólicas segundo frases estabelecidas pelo Ministério da Saúde.
Por outro lado, o Conar é bastante ativo na fiscalização das peças publicitárias veiculadas em qualquer tipo de mídia, inclusive (e, hoje em dia, principalmente) pela Internet.
Enquanto entidade privada de autorregulamentação do setor publicitário, o Conar não detém poder geral de polícia e não pode, por exemplo, proibir a veiculação de determinada propaganda ou obrigar a sua cessação de exibição, nem mesmo aplicar multas a qualquer parte envolvida. Suas decisões podem resultar no envio de advertência ou na recomendação de alteração ou sustação da publicidade.
Caso a decisão não seja seguida pelo anunciante, agência de publicidade ou veículo, o Conar pode tornar público o seu posicionamento.
O Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária (“”Código do Conar””), além de possuir disposições gerais aplicáveis a todos os tipos anúncios, conta com anexos referentes a produtos e mercados específicos, incluindo bebidas alcoólicas (Anexo A), cervejas e vinhos (Anexo P), ices e bebidas assemelhadas (Anexo T).
Esses três anexos contêm normas que visam a proteger crianças e adolescentes, não permitindo, por exemplo, que pessoas que aparentam ter menos de 25 anos figurem em propagandas de tais produtos e determinando que as mensagens sejam destinadas apenas ao público adulto. Também há determinação expressa de que os sites das marcas de bebidas alcoólicas contenham dispositivo de acesso seletivo (por exemplo, uma pergunta sobre a idade do usuário exibida antes que ele consiga visualizar o conteúdo).
Tais anexos adotam o “”princípio do consumo com responsabilidade social””, segundo o qual “”a publicidade não deverá induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável”” de bebidas alcoólicas. Esse princípio é destrinchado em várias recomendações, como a de abstenção de uso em peças publicitárias de imagens ou linguagem que sugiram ser o consumo de bebidas alcoólicas sinal de êxito profissional ou social e a não associação do consumo ao desempenho de qualquer atividade profissional.
O Código do Conar ainda “”encoraja a realização de campanhas publicitárias e iniciativas destinadas a reforçar a moderação no consumo””, além de estipular que as peças publicitárias contenham cláusulas de advertência (como as frases “”beba com moderação””, “”se for dirigir não beba”” ou “”servir bebida alcoólica a menor de 18 anos é crime””).
Foi o público que fez o Conar agir. A entidade recebeu várias denúncias a respeito de lives realizadas por um popular cantor e por uma renomada dupla sertaneja em março e abril de 2020, ambas patrocinadas por cervejaria. Então, instaurou representações contra os artistas e a empresa que patrocinou os eventos, com o objetivo de apurar os fatos ocorridos durantes as transmissões ao vivo.
Logo houve críticas. Disseram que o Conar que estaria atuando para restringir as lives do gênero sertanejo. Diante disso, a entidade emitiu um comunicado, em 20 de abril, esclarecendo que não visa a examinar o “”conteúdo artístico e/ou editorial que, constitucionalmente, está sob o domínio da liberdade de expressão””, mas apenas a analisar as peças publicitárias veiculadas durante as transmissões.
Ao analisar o primeiro dos casos (representação nº 078/20), o Conar reconheceu, sim, o formato inovador da publicidade, mas destacou a necessidade de serem respeitadas as normas de seu Código. O Conar apontou que, ao longo da apresentação, o artista foi mostrado repetidas vezes consumindo cerveja exageradamente e que os anunciantes não adotaram medidas para restringir a exibição desse conteúdo a menores de idade ou para exibir as frases de advertência.
A defesa do cantor ressaltou que, numa segunda live, o problema foi corrigido, pois foram exibidas as frases de advertência e o alvo não foi o público infanto-juvenil. Além disso, asseverou que as manifestações durante a primeira apresentação foram espontâneas por parte do artista.
Já a defesa da cervejaria patrocinadora afirmou que foram fornecidos instruções e treinamentos sobre as restrições publicitárias ao cantor e sua equipe, bem como sobre a necessidade de uso das cláusulas de advertência. Também reforçou que os atos praticados pelo artista foram espontâneos e não estariam sujeitos ao controle da empresa, tanto que durante a transmissão ele chegou a consumir bebidas alcoólicas de outros fabricantes.
A relatoria do Conar esclareceu que, nesse tipo de publicidade, é recomendável a utilização de dispositivo de acesso seletivo, como um controle de idade no site em que a live é exibida, bem como a não ingestão de bebidas alcoólicas, pois o conteúdo pode alcançar, ainda que não intencionalmente, o público infanto-juvenil.
Ao final, o Conar entendeu que a cervejaria patrocinadora tomou, na medida do possível, os cuidados previstos no Código do Conar e enviou advertência ao cantor, para relembrá-lo do “”seu papel de influenciador e sua responsabilidade perante o público””.
No caso envolvendo a dupla sertaneja (representação nº 81/20), a defesa da cervejaria patrocinadora adotou posicionamento semelhante, alegando que as lives são marcadas pela espontaneidade dos artistas, que consumiram – inclusive – bebidas de outras fabricantes, e que a empresa não possui capacidade de influir no conteúdo da apresentação.
A defesa dos artistas sertanejos também ressaltou o caráter espontâneo e a possibilidade de ocorrência de falhas, pois o formato da apresentação e da publicidade é novo, estando sujeito a revisões e aprimoramento. Ainda defendeu que os mecanismos de restrição de acesso seriam aplicáveis somente a sites das marcas de bebidas alcoólicas, mas que, mesmo assim, como demonstração de boa-fé, habilitou a restrição de idade para a visualização da apresentação gravada.
Assim como no primeiro caso, o Conar arquivou a representação com relação à cervejaria patrocinadora e enviou advertência à dupla de cantores para fins de educação e fomento da prática responsável e ética da publicidade.
Em julho de 2020, mais um caso envolvendo live de outra dupla sertaneja foi submetido à apreciação do Conar (representação nº 84/20). A cervejaria patrocinadora, em sua defesa, apontou que o contrato de patrocínio firmado com os artistas destacava a exigência de observância das regras aplicáveis à publicidade, alegou não ter como aprovar a forma de inserção da publicidade durantes as lives justamente por serem apresentações ao vivo e que não tem controle sobre a restrição de acesso ao vídeo posteriormente disponibilizado em canal de terceiro. A dupla sertaneja não apresentou defesa.
A relatora da representação propôs em seu voto a inclusão de frase de advertência caso o vídeo seja novamente publicado e a ativação de mecanismo de restrição de acesso, bem como o envio de advertência aos cantores, o que foi aceito por unanimidade pela Câmara julgadora do caso.
Em agosto de 2020, o Conar novamente enfrentou a questão, ao decidir sobre uma live patrocinada por uma marca de cerveja e outra de cachaça (representação nº 120/20). As fabricantes das bebidas alcoólicas argumentaram que os produtos estavam expostos apenas como elementos decorativos do cenário, e que a inserção de frases de advertência seria de responsabilidade do artista, e não dos patrocinadores.
O relator entendeu que, embora as patrocinadoras tenham argumentado que orientaram o artista com relação às regras previstas no Código do Conar, não se desincumbiram do ônus de demonstrar que tomaram medidas adequadas para a observância das normas publicitárias. Nesse caso, o Conar decidiu pela sustação da publicidade, para que fossem retiradas do ar as imagens do artista ingerindo as bebidas das patrocinadoras.
A consolidação de um formato publicitário relativamente novo, que tem como traço característico a espontaneidade inerente às apresentações ao vivo, potencializada pela falsa sensação de distanciamento do público (por não contar com plateia presencial), aumenta o risco de inobservância das normas éticas que regem a atividade publicitária.
A atuação recente e o teor das decisões proferidas pelo Conar em relação às lives confirmam a necessidade de atenção à publicidade inserida nos eventos dessa natureza. Essas mesmas decisões apontam, por outro lado, que é possível, sim, a exploração publicitária das lives de maneira compatível com a legislação brasileira e com as normas éticas que regem a publicidade, desde que observadas as precauções adequadas.
A correta orientação dos artistas e produtores e a adoção de cláusulas contratuais específicas são medidas capazes de evitar consequências jurídicas indesejadas para os profissionais envolvidos e para as empresas patrocinadoras de tais eventos. É importante, portanto, que uma assessoria jurídica em linha com as normas que regem a atividade publicitária esteja envolvida na organização desses eventos inovadores, as lives.”