Com o objetivo de fomentar o ecossistema de startups brasileiro, projeto de lei em tramitação é baseado em pilares como incentivo a investimentos e estímulo à inovação
O ecossistema de inovação brasileiro evoluiu muito nos últimos anos com o número crescente de aceleradoras, incubadoras, parques tecnológicos, instituições de apoio ao empreendedorismo, investidores-anjos, VCs, corporate venturers e, é claro, startups. Mas a história não é fácil e não teve final feliz até agora para grande parte das empresas tupiniquins nascentes. Muitas não vencem o vale da morte, estágio em que as startups não têm capacidade de gerar caixa para alimentar crescimento e, portanto, é necessário captar investimentos.
Há diversos gargalos no país que limitam o apetite de investidores – e, por conseguinte, a disponibilidade de capital para um maior número de empreendedores – , tornando muitos dos empreendimentos inovadores locais em voos de galinha. Um desses gargalos, conforme o estudo Os 5 Maiores Desafios dos Empreendedores, da Endeavor Brasil, é a burocracia, que inclui questões jurídicas e regulatórias.
É fato: há muita insegurança jurídica nessa caminhada. Questões como os mecanismos de desconsideração da personalidade jurídica no Brasil tornam o risco de investir muito alto, o que espanta os investidores locais e, principalmente, os apoiadores estrangeiros. Além disso, há entraves para abertura e fechamento de empresas, um sistema tributário quase incompreensível e uma legislação trabalhista custosa, fatores que dificultam muito a vida dos empreendedores.
Fora tantos obstáculos, uma pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Startups (ABStartups) apontou que, entre os anos de 2015 e 2019, o número dessas empresas no país aumentou em 207% (passando de 4.151 para 12.727), entre fintechs, insurtechs, agritechs, legaltechs, edutechs, healthtechs e biotechs.
Adicionalmente, em setembro de 2020, chegamos a 12 unicórnios brasileiros, startups cujo valor de mercado ultrapassa US$ 1 bilhão. A primeira empresa brasileira a ganhar esse título foi a 99, em 2018, demonstrando que, em um espaço de menos de três anos, graduamos uma dúzia. Tais dados evidenciam a atual expansão, enorme potencial e importância desse ecossistema para a economia brasileira.
Nesse contexto, precisamos festejar o projeto de lei complementar nº 249, de 2020, que institui o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador. Apresentado ao Congresso Nacional pelo poder executivo em 20 de outubro, endereça questões essenciais para apoiar o desenvolvimento do ecossistema de startups brasileiro.
Trata-se de uma caixa de ferramentas para solução de relevantes gargalos do nosso ordenamento jurídico que impedem tantos empreendedores brasileiros de alcançarem seus sonhos. Com o objetivo de fomentar o ecossistema de startups brasileiro, é baseado em pilares como:
– Simplificação da criação de empresas inovadoras;
– Incentivo a investimentos no setor;
– Estímulo à pesquisa, ao desenvolvimento e à inovação;
– Flexibilização de regulação para projetos experimentais;
– Facilitação da contratação de empresas inovadoras pelo poder público.
Atualmente em tramitação no Congresso Nacional, o Marco Legal das Startups traz algumas novidades e busca complementar e aperfeiçoar iniciativas legislativas anteriores, tendo sido, inclusive, apensado ao projeto de lei complementar nº 146, de 2019, também direcionado à estruturação de um ambiente fértil para o desenvolvimento de startups.
O novo projeto de lei propõe o estabelecimento de uma definição clara e direta de startup, de forma a delimitar o alvo de grande parte de suas normas. Startups são “organizações empresariais, nascentes ou em operação recente, cuja atuação caracteriza-se pela inovação aplicada a modelo de negócios ou a produtos ou serviços ofertados”.
Para tanto, torna elegíveis o empresário individual, a empresa individual de responsabilidade limitada (EIRELI), as sociedades empresárias e as sociedades simples com até seis anos de inscrição perante o CNPJ, que: (i) possuam faturamento bruto anual de até R$ 16 milhões no ano-calendário anterior ou de aproximadamente R$ 1,3 milhão, multiplicado pelo número de meses de atividade no ano-calendário anterior, quando este período for inferior a doze meses e; (ii) declarem utilizar modelos de negócios inovadores para a geração de produtos ou serviços ou estejam enquadradas no regime Inova Simples da Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006 (LC 123/2006).
Assim, o conceito de startup do Marco Legal complementa o atual conceito vigente no nosso ordenamento jurídico por meio da LC 123/2006, conforme alterada pela Lei Complementar nº 167, de 24 de abril de 2019, que instituiu o Inova Simples e considera como startup a “empresa de caráter inovador que visa a aperfeiçoar sistemas, métodos ou modelos de negócio, de produção, de serviços ou de produtos”.
Com o objetivo de estimular o investimento em projetos de inovação, o Marco Legal das Startups pretende estabelecer regras legais para os instrumentos já utilizados por investidores-anjos e outros investidores early stage, como em contrato de opção de compra de participação societária, contrato de mútuo conversível, debênture conversível etc.
De forma a garantir mais segurança jurídica para a realização de tais investimentos, propõe que estes, realizados mediante tais instrumentos, não integrem o capital social da empresa, fazendo com que o investidor esteja protegido de forma abrangente contra quaisquer passivos que a startup venha a incorrer, não sendo considerado sócio ou acionista – exceto em caso de dolo, fraude ou simulação.
Tais disposições são um importante avanço para o ecossistema quando comparadas com a LC 123/2006, conforme alterada pela Lei Complementar nº 155, de 27 de outubro de 2016 (a Lei de Investimento Anjo), que concedeu blindagem patrimonial aos anjos somente para os investimentos realizados por meio de contrato de participação, que, por sua vez, foi concebido com características tão engessadas e aspectos tributários tão não atrativos que o levaram ao desuso antes mesmo de decolar.
Sobre o estímulo à pesquisa, ao desenvolvimento e à inovação (PD&I), o Marco Legal das Startups possibilita que empresas com obrigações legais ou contratuais de investimento em PD&I possam cumpri-las mediante aporte de recursos em startups por meio de fundos patrimoniais ou algumas categorias de fundos de investimento em participações. Tal medida é um caminho para a atração, para os fundos de investimento e, no fim do dia, para as próprias startups, de quantidade expressiva de capital atualmente represado pela dificuldade que as empresas têm para estruturar tais projetos.
Outra importante proposição é a possibilidade de criação, pelos órgãos e entidades da administração pública – de forma individual ou conjunta –, de programas de ambiente regulatório experimental, também conhecido como sandbox regulatório. Nele, ocorre o afastamento temporário da incidência de certas normas pelo(s) ente(s) responsável(is), em um ecossistema de ingresso controlado com o propósito de incentivar o desenvolvimento de modelos, técnicas e tecnologias inovadoras sem a obstrução gerada pela regulação, muitas vezes prejudicial à inovação por ser excessiva ou obsoleta.
Por fim, o Marco Legal das Startups estabelece regras para a contratação pela administração pública de serviços de desenvolvimento e teste de produtos e soluções inovadoras prestados por startups. Com base na estrutura proposta, a contratação ocorrerá por meio de processos licitatórios, permitindo-se, inclusive, que licitações sejam restritas a empresas classificadas como startups, nos termos definidos pelo novo projeto de lei. Trata-se de uma maneira de viabilizar a atuação direta do Estado no desenvolvimento do ecossistema de inovação no Brasil, promovendo inovação por meio do uso de seu poder de compra.
A proposta é que a parceria, após o devido processo licitatório, seja executada por meio de Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), que deverá conter previsões de metas a serem atingidas, monitoramento do desenvolvimento da parceria, matriz de riscos entre as partes, definição da titularidade de direitos de propriedade intelectual e participação nos resultados da exploração da parceria. Segundo a redação, uma vez encerrado o CPSI, poderá ser celebrado contrato para o fornecimento do produto da startup sem nova licitação.
A transformação dos modelos de negócios é uma realidade diária. Embora ainda seja um projeto em tramitação, o Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador demonstra o interesse da administração pública e os seus planos concretos de engajamento em aumentar a segurança jurídica e diminuir a burocracia, em linha com as tendências internacionais, para potencializar tais inovações no país e reduzir a taxa de mortalidade de nossas startups.
O Brasil é um país de proporções continentais, população gigantesca e uma das maiores economias globais. Isso significa que temos oferta e demanda para incentivar o empreendedorismo em qualquer setor. Ademais, em plena era da digitalização, temos 234 milhões de telefones celulares ativos no Brasil – mais de um por habitante, segundo dados recentes da FGV-SP –, um canal de distribuição para produtos, serviços e ferramenta de marketing digital de baixo custo para scale-up dos modelos de negócios inovadores das startups. Trata-se de uma oportunidade singular que poderá ser mais bem explorada com os avanços que o Marco Legal das Startups se propõe a conquistar. Ficamos na torcida.
Confira mais detalhes e desdobramentos do Marco Legal das Startups no segundo episódio do podcast O Futuro Vem do Futuro, com participação de Leonardo Cruz, sócio do Pinheiro Neto Avogados.”