Não tem como desfrutar das novas tecnologias sem educação. Para que uma empresa use blockchain para otimizar seus negócios, ela deve compreender os benefícios e desafios
Blockchains e a grande promessa do que eles podem fazer, certamente geram interesse em diversas indústrias. E os termos desintermediação, rastreabilidade e tokenização são os mais usados para descrevê-los.
No entanto, da teoria e à adoção desta tecnologia pelas indústrias existe um longo caminho que, de início, esbarra em questões que vão desde como podemos implementá-la concretamente, até se já existe alguma aplicação em funcionamento?
Em suma, para que determinada empresa ou setor embarque na tecnologia como ferramenta para otimizar um modelo de negócio ou indústria, é preciso que se compreenda como blockchain se tornaria tangível nesta empresa ou indústria, e quais benefícios reais o sistema poderia trazer.
Parece claro que o interesse e o conhecimento da tecnologia blockchain variam e esse interesse, na maioria das vezes, não significa necessariamente compreensão de seus benefícios e desafios.
Tendo isto em conta, no artigo de hoje, a partir de um caso de uso real, vamos explorar os benefícios e os questionamentos sobre a utilização da tecnologia blockchain como ferramenta para otimizar a indústria de mídia.
Ao lado dos desafios criativos de produzir e distribuir grandes conteúdos de vídeo internacionalmente, há uma enorme carga administrativa. Os colaboradores para a produção – escritores, diretores, atores, músicos e outros – , todos têm que ser pagos. As fontes de financiamento têm que ser conciliadas, gerenciadas e, no devido tempo, reembolsadas. E uma vez que o conteúdo esteja pronto, então as receitas devem ser coletadas daqueles que compram – os canais de radiodifusão, os serviços de OTT (over-the-top), outros distribuidores, a cadeia de fornecimento de mídia física, e até mesmo pessoas físicas. Algumas dessas receitas serão retidas pelo produtor, e outras serão repassadas para o lado da oferta.
Trabalhando com produtores, emissoras, financiadores de conteúdo, agências governamentais, sindicatos e formuladores de políticas, o Groupe Média TFO desenvolveu um protótipo de plataforma que usa blockchain para criar uma abordagem completamente nova para gerenciar todas essas relações.
Ao implementar blockchain no seu caso de uso, a TFO observou que um requisito crítico era tornar o protótipo acessível a seus usuários através de um navegador web padrão. Isto elimina qualquer dificuldade percebida de acesso.
Assim, as pessoas sem habilidades especializadas puderam se registrar como usuários no blockchain TFO, o que era vital se a proposta fosse atingir a massa crítica – o que faz todo sentido, pois a abordagem blockchain só é válida se todos a utilizarem.
Existem plataformas blockchains e DLTs (Distributed Ledger Technologies, em inglês) amplamente reconhecidas como Ethereum, Hyperledger Fabric, Polygon, dentre outros.
O protótipo utilizou StonePaper.io – um contrato digital blockchain que foi projetado para fornecer uma transação e uma camada contratual na plataforma blockchain da TFO.
Como blockchain TFO, foi selecionado o blockchain privado (DLT) Hyperledger Fabric. E a principal razão para esta escolha é que ele suporta blockchains privadas e permissionadas, e seu mecanismo de consenso não requer o uso de criptomoedas – o que no projeto, poderia encontrar obstáculos legais.
Na hipótese, o Hyperledger Fabric representou
a melhor solução prática – mas é bom ressaltar que a escolha do blockchain, seja público ou privado, permissionado ou não, vai depender dos detalhes de cada projeto. Já comentamos nesta coluna sobre qual blockchain é o mais adequado para o posicionamento competitivo das empresas.
Pois bem, com o protótipo, a TFO conseguiu adquirir experiência no uso de blockchain na indústria da mídia, e obteve alguns insights preciosos.
Embora o tamanho do caso de uso da TFO não permita generalizações, descobriu-se que, entre as partes interessadas consultadas, os grupos com maior probabilidade de se interessar por blockchain e os mais otimistas quanto ao seu potencial são:
– Pequenas empresas.- Startups.- Empresas do setor digital (particularmente vídeos empresas de instalação de jogos e multimídia) e empresas de criação de conteúdo.
Dentre os benefícios mais citados:
– Autenticação, gerenciamento de direitos digitais e rastreabilidade das operações de distribuição, combinadas com a inalterabilidade dos dados.- A capacidade de inovar e controlar melhor o financiamento de projetos e a monetização de conteúdo.- Maior acesso ao mercado para empresas que têm dificuldade em mostrar seu potencial para tomadores de decisão e intermediários.- A oportunidade de interagir mais de perto com o público, desenvolver parcerias e criar comunidades de interesse.
Em termos gerais, as aplicações blockchain que despertam mais interesse são aquelas que parecem mais realistas e tangíveis para as partes interessadas do setor. Também foram consideradas interessantes as aplicações blockchain capazes de melhorar os sistemas existentes, em vez de substituí-los por completo. Afinal, a substituição do equipamento legado possui, na maioria das vezes, um custo bem alto que muitas vezes não cabe no orçamento da empresa.
A primeira vantagem que os players do setor apontaram ao considerar a tecnologia blockchain no caso de uso da TFO foi a melhoria decorrente da integração nos sistemas de informação. Acesso a dados, análise de audiência, capacidade de distribuir receitas de maneira mais rápida e eficiente e capacidade de gerenciar melhor o marketing foram os elementos mais apontados. Outro ponto interessante é que as entrevistas realizadas a partir do protótipo da TFO deixaram a impressão geral de que a questão principal são as receitas. Como assim?
A proliferação de plataformas, pirataria, opacidade de certos tipos de distribuição e ao mesmo tempo as tremendas oportunidades que o digital oferece, aumentam a necessidade crucial de maior controle sobre o marketing. E essa necessidade, sentida tanto por criadores como produtores, também foi observada pelos distribuidores.
Some-se a isto a constatação de que o uso de uma blockchain não significa apenas desintermediação, mas que blockchain também serve como um sistema de informação útil para atividades como automação de transações e relatórios de distribuição, por exemplo. Isto é, blockchains são uma ótima ferramentas de colaboração.
Por fim, constatou-se que a tecnologia blockchain poderia ser de grande interesse para investidores e agências de financiamento que buscam medir o sucesso público e/ou comercial e, quando aplicável, pode ser utilizado como instrumento para recuperar o dinheiro investido.
Quanto aos desafios apontados pelos entrevistados no protótipo blockchain do TFO, é bom destacar que grande parte deles tem origem na falta de conhecimento mais aprofundado da tecnologia.
Nas aplicações de sistemas de informação, particularmente no setor de produção de conteúdo, surgiram questionamentos sobre a rastreabilidade das blockchain e o verdadeiro benefício da transparência.
Dentre as principais questões levantadas, podemos citar algumas como:
– Quem decide e monitora a transparência?- E a transparência é benéfica ou até realista em um setor em que a proteção dos direitos e da privacidade em torno dos acordos é tão importante?- A transparência é uma coisa boa, como saber se os dados imputados na blockchain são realmente confiáveis?- Quem deveria ter permissão, ou não, para inserir ou modificar dados em uma blockchain?
Note que é o esquema de governança e autenticação de blockchain que garante sua confiabilidade.
– Quem “”policia”” o sistema (blockchain)? Um mecanismo de consenso é realmente confiável?
Por outro lado, a questão do verdadeiro impacto da desintermediação também surgiu no estudo de caso.
– Não significaria apenas transferir o controle para outro tipo de intermediário?
Notavelmente, esse problema é levantado por empresas de produção que estão em uma posição sólida o suficiente para gerenciar a distribuição de obras nas quais detêm direitos.
– E, finalmente, a cibersegurança de uma blockchainé realmente melhor e mais eficaz que um banco de dados centralizado?
Apesar do entendimento geral das vantagens associadas ao aumento da transparência, a noção de um registro de transação descentralizado mostrou-se desconcertante em vários níveis diferentes para a maioria das pessoas envolvidas no protótipo blockchain do TFO. Que interoperabilidade pode ser alcançada entre os sistemas existentes em uma solução blockchain? E quanto à interoperabilidade com outras blockchains?
Além disso, o setor de mídia é em grande parte baseado em projetos. Os projetos têm um começo e um fim, e podem evoluir. Dessa forma, as partes que participaram do protótipo questionaram como contratos automatizados e dados inalteráveis podem ser compatíveis com um contexto em constante mudança?
Por exemplo, os financiadores geralmente alteram contratos durante e no final de um projeto. Nesse passo, não está claro quando e como a tecnologia pode ser integrada a esse tipo de situação.
Frequentemente, o primeiro pensamento ao considerar o uso de uma solução blockchain é que ela exigirá uma criptomoeda. E este tipo de consideração produziu confusão – por exemplo, dúvida se há diferenças entre criptomoedas e tokens – e um impacto negativo na maneira como produtores e distribuidores que participaram do protótipo blockchain do TFO enxergavam a tecnologia blockchain.
Constatou-se que o conceito por trás dos tokens não era compreendido com a profundidade necessária, pela maioria dos participantes do protótipo, criando assim muitas dúvidas, principalmente para as pessoas mais afastadas da indústria digital, e sem qualquer noção do que seja um modelo de negócio em rede.
Nessa linha, a falta de exemplos concretos de tokenização no setor de mídia – suportados pelos resultados – gerou muita insegurança nos tomadores de decisão, eis que não conseguiram vislumbrar com precisão os riscos e benefícios de uma estratégia via tokens (tokenomics) poderia agregar valor ao negócio.
Também surgiram muitos questionamentos quanto à utilização de NFTs, seus prós e contras, ou ainda, se representam um investimento ou contribuição para um projeto, e como eles poderiam agregar valor?
Em resumo, há uma grande dúvida sobre o porquê optar por tokens. Além disso, os produtores se mostraram cautelosos ao reagir a uma estratégia que possa implicar um nível adicional de risco financeiro – que eles não desejam ou não podem assumir.
Particularmente no setor de documentários, verificou-se um forte interesse no uso de sistemas baseados em token e, portanto, na criação de comunidades de interesse, mas o fato deste setor já lidar com desafios significativos de financiamento se mostrou como um impeditivo.
Na indústria de games, embora muitos jogos sejam distribuídos por plataformas, os estúdios de desenvolvimento de jogos, em suas funções de editores, veem o blockchain como uma oportunidade importante para melhorar as relações com seus mercados. O mesmo se aplica aos produtores de conteúdo digital – de séries da web, por exemplo. No entanto, para a maioria dos distribuidores que trabalham exclusivamente em cinema e televisão, o interesse em ledgers descentralizados não se mostrou tão óbvio. Afinal, como uma solução blockchain garantirá maior segurança e transparência?
Alguns podem argumentar que plataformas como Spotify e Amazon já disponibilizam números de vendas diárias, apesar de admitir haver uma lacuna nos dados relacionados aos seus consumidores. Obviamente, as plataformas não compartilham dados do consumidor devido ao seu alto valor.
De outro lado, o setor de distribuição reconheceu a partir do protótipo a utilidade de um sistema que rastreia as vendas e que tem capacidade para melhorar a eficiência administrativa. Todavia, a implementação de um sistema desse tipo não ficou clara para eles. Aqui, a questão da interoperabilidade entre duas blockchains e entre a blockchain e o “”mundo exterior”” foi apontada como fundamental.
O desafio tecnológico possui menor repercussão, quando comparado ao desafio de entender a natureza do negócio, seu ambiente, as partes interessadas e suas regras e processos.
Quando olhamos os desafios e as questões apontadas pelas pessoas envolvidas no protótipo blockchain da TFO, percebemos que a integração da tecnologia blockchain no setor de mídia exige muito mais a compreensão das implicações da tecnologia blockchain no setor, que uma sólida experiência em seus processos de negócios.
Não há como desfrutar dos avanços propiciados pelas novas tecnologias sem educação. Por isso, é importante que as pessoas em posição de liderança e os tomadores de decisão das empresas estejam atentos não apenas aos benefícios que novas tecnologias podem trazer ao seu respectivo setor de atuação, mas também busquem um conhecimento mais aprofundado em novas tecnologias.
Conhecimento é poder! Nos vemos em breve!”