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Sociedade digital: a imagem do mundo que esconde o próprio mundo

Quando espiamos o mundo pela janela digital, tudo não passa de uma fábula, porque escolhemos ver o que nos convém. Talvez o ser humano realmente não consiga escapar disso, mesmo sendo consciente do fenômeno

Cássio Pantaleoni
29 de julho de 2024
Sociedade digital: a imagem do mundo que esconde o próprio mundo
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Em 1878 Nietzsche publicou a obra intitulada “Humano, demasiadamente humano”. No subtítulo destacava a quem a obra era endereçada: “Um livro para espíritos livres”. Cento e quarenta anos depois, numa manhã de sábado sentado diante da tela do meu computador, alheio à efeméride, descubro-me observando as postagens de uma famosa rede social. Enquanto navego pelas páginas digitais, reparo, ainda com o olhar desavisado, as escolhas, as opiniões e as preferências das pessoas que constituem a totalidade de minhas conexões. Assim me ocupo como quem apenas se distrai. 

Depois de alguns instantes, entretanto, proponho-me a observação mais criteriosa e através de uma dobra centenária no tempo – quem sabe? –, Nietzsche me sussurra três outras perspectivas. A primeira delas condiz com a ideia de que cada um consome o que lhe interessa e que faz a interpretação que lhe convém. A segunda se refere à possibilidade, agora garantida pela estrutura essencial da sociedade digital, de exercermos o papel de “espírito livre”. A terceira diz respeito a afirmação de nossas vontades (Nietzsche aludia a isso como vontade de poder, mas não vou complicar). 

Que nos revelariam tais perspectivas (se é que têm algo a nos revelar)? Que mundo é este que, pela revolução digital, agora se abre convenientemente para nós, espíritos livres, que queremos afirmar as nossas vontades?

Lembro-me de um fato interessante da história mundial. Em 14 de setembro de 1812, as tropas de Napoleão entraram em Moscou esperando a rendição do czar russo. A decisão de avançar, após a sangrenta batalha de Borodino, deu-se em razão do recuo das tropas russas lideradas pelo general Kutozov. O general francês encontrou a cidade abandonada e em poucos dias perdeu o controle de suas tropas que, por desorganização, se dedicaram à pilhagem. Napoleão, diante do recuo russo, interpretou o movimento como lhe convinha: após a vitória em Borodino, imaginou que os russos se renderiam e que as tropas francesas, mesmo exaustas depois da longa campanha, ainda manteriam a disciplina diante das dificuldades de reabastecimento. O desfecho dessa interpretação (que convinha aos objetivos e vontades de Napoleão) foi o insucesso, seguido do  retorno desesperado à França.

Nada incomum. Porém imagine o efeito das interpretações convenientes, como essa de Napoleão, nos dias atuais. Constantemente, diversas informações não verificadas são veiculadas nas mídias sociais. No ecossistema digital, a miríade de informações disponíveis é sempre consumida com o pressuposto de que o que alcançamos ou retiramos dali são fragmentos que nos permitem interpretações plausíveis. O consumo de tais informações é muito superior a qualquer outra mídia. Um estudo da Global Digital desenvolvido em 2018, por exemplo, informa que mais de 130 milhões de brasileiros ocupam em média quase 4 horas por dia nas redes sociais. Ou seja, se considerarmos que o tempo médio de vigília de população brasileira é de 16 horas diárias, as mídias sociais representam 25% do tempo de interação com informações diversas. As mídias sociais são a grande janela digital de onde espiamos a sociedade. 

As estatísticas mundiais são mais assombrosas ainda. Segundo números do site Statista, a cada minuto mais de 2 milhões de snaps são compartilhados através do Snapchat e cerca de 500 mil tweets são compartilhados através do Twitter. Como imaginar que esse fluxo de informações não irá influenciar o modo como interpretamos o mundo, especialmente ao modo que nos interessa interpretá-lo? Como ignorar o fato de que muitas de nossas decisões de viver desta ou daquela maneira não sofrem influência disso? Na sociedade digital, nós exercemos o direito de interpretar os dados como nos convêm, a exemplo de Napoleão diante de Moscou, mas com quantidades e velocidade incomparáveis.

É preciso reconhecer, ao mesmo tempo, que o meio digital tornou-se a instância onde, enfim, os grilhões da comunicação manipulada por interesses dos poderosos foram rompidos. Ideias que antes eram libertárias ou revolucionárias – ideias sobre a liberdade de gênero, sobre o aborto, sobre a igualdade racial, entre outras – agora são veiculadas livremente, garantindo assim o exercício do “espírito livre”. A sociedade digital escancarou as janelas que permitem a observação do mundo distante dos preconceitos e de interesses escusos. Se alguém nos incomodar, basta fechar a janela digital.

Porém toda moeda tem dois lados. Se no passado temíamos a manipulação da informação, agora estamos diante do fenômeno da distorção da informação – as fake news. Cientistas do Massachusetts Institute of Technology (MIT, ao qual este blog é ligado) publicaram um estudo em 2018 segundo o qual as notícias falsas se espalham 70% mais rápido do que as verdadeiras, alcançando muito mais gente em um menor espaço de tempo. As consequências? Vão desde o caso da dona de casa espancada por suspeita de envolvimento com rituais de magia negra, decorrentes de boatos gerado nas redes sociais,  até o caso do casal que usou uma foto ao lado de um morador de rua para enganar mais de 14 mil pessoas com uma campanha de doações.

Evidentemente que a produção de notícias falsas não é invenção da sociedade digital. Já em 1564 o rei espanhol Felipe II foi vítima desse expediente. O monarca foi alvo de um boato acerca de sua própria morte a tiros; a notícia, inicialmente divulgada em Madri, implicaria um risco à monarquia. Certamente há milhares de casos semelhantes na história, porém é fato que, na sociedade digital, a disseminação desses boatos é viral.

A própria essência da liberdade oferecida pela sociedade digital, estrutura que permite a afirmação de nossas vontades (que institui a janela de observação do mundo que mais se ajusta às nossas expectativas e que nos dá acesso ao mundo) é também a essência de uma restrição. Enquanto liberta também restringe. A janela digital garante acesso ao mundo ocultando uma grande parte dele. Ela mostra apenas uma imagem do mundo – imagem que se ajusta às nossas interpretações livres ou, dito de outro modo, às interpretações dos espíritos livres. Mas o que está oculto de fato?

Ora, enquanto saudávamos a crescente instituição da sociedade digital o Banco Mundial, em 2015, reportava que 736 milhões de pessoas ainda viviam em condição de extrema pobreza, ou seja, possuíam renda inferior a US$ 1,90 por dia. Em 2017, a Organização Mundial de Saúde/Unicef informava que três em cada dez pessoas no mundo não tinham acesso à água potável em suas casas e seis em dez não dispunham de um sistema de saneamento seguro. Esses dados representam aquele contingente de pessoas que, por não tirar proveito da inclusão digital, vive longe das janelas. Ou seja, a sociedade digital ainda é uma aldeia restrita aos incluídos.

O lado não tão positivo do ambiente digital é que, enquanto ele nos dá possibilidades de consumir e interpretar informação – e, assim, de praticar a suposta liberdade de espírito e afirmar nossas vontades –, também nos desonera de avaliar as implicações de estarmos o tempo todo diante da imagem que nos convém. É uma janela que acontece como simulacro do mundo e das sensibilidades. 

Se, num futuro não muito distante, estivermos conectados mais profundamente aos nossos dispositivos móveis, como alguns preveem, crendo num mundo e numa sensibilidade artificiais, qual será a repercussão disso para as famílias, as amizades e nossas carreiras? Difícil imaginar.

Ao nos oferecer a possibilidade de afirmar nossas opiniões, preferências, escolhas e conexões, a sociedade digital nos dá a a esperança de que, de algum modo, cedo ou tarde, estaremos incluídos no mundo como gostaríamos de estar. Sim, a janela digital torna transparente a sociedade; mas paradoxalmente, ela a oculta, substituindo, por assim dizer, o mundo real por uma versão artificial.

Voltemos ao filósofo. Quando Nietzsche dá voz a seu Zaratustra, este grita: “Permaneceis fiéis à terra!”. Era o grito de quem queria abandonar as fábulas decorrentes das interpretações metafísicas para encontrar o mundo legítimo, o mundo onde o humano, demasiadamente humano, pudesse vigorar em sua plenitude. Avançamos muito desde então, mas a artificialidade do mundo que ora se instaura possui sua própria metafísica – a revolução digital. Talvez o ser humano não consiga superar a metafísica afinal, mesmo quando entende que a razão é frágil e que tudo não passa de uma fábula – uma história fictícia que sustenta aquilo que nos convém e que afirma nossa vontade, a vontade dos “espíritos livres”.

Cássio Pantaleoni
Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra *Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano*.

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