
Uma reflexão sobre construção de confiança, noções de coletividade, empatia, resiliência, autocuidado e aceitação da frustração
N.E. Antes que o leitor pense que este artigo caiu aqui por engano, adianto que não. Ele está exatamente onde deveria estar. Falar de vínculos familiares é falar sobre a construção de conexões humanas — algo que está (ou deveria estar) no cerne das organizações e da liderança. Construir vínculos, acolher o imprevisível e aprender ao longo do caminho: é assim que crescemos — dentro ou fora do ambiente profissional.
Assisti à série Adolescência e, como muitos espectadores, fiquei assustada e profundamente reflexiva. A série apresenta um cenário que muitos pais sequer imaginam: ambientes supostamente controlados que, na prática, já não oferecem nenhum controle. Na verdade, talvez nunca tenhamos tido controle de nada.
Dar ou não acesso à internet já não é mais a questão central. Por ali transitam códigos que desconhecemos, informações às quais não temos acesso e estímulos que provocam reações inimagináveis. A vida social das nossas crianças e adolescentes não é mais construída sob o nosso olhar atento. Ela ocorre em trilhas paralelas, que desconhecemos. E, no entanto, os dilemas da idade são os mesmos de sempre. Há décadas, questões como aceitação, inclusão, reconhecimento e autoestima provocam as mesmas dores e traumas — o que mudou é o meio pelo qual se manifestam.
Sou de uma geração em que pais e mães batiam no peito com a certeza de que educaram seus filhos o suficiente para protegê-los do mundo. Acreditava-se que bastavam um olhar vigilante, horários rígidos e controle das amizades. E, de fato, há 30 anos, muitas vezes isso bastava. Havia uma certa blindagem contra as “doenças sociais” — drogas, más influências, violência. Mas hoje, não temos mais garantias de nada.
Nos últimos 25 anos, o acesso se tornou uma fonte sem precedentes de estímulos desregulados. Nossos jovens passam centenas de minutos diários sendo bombardeados por informações, opiniões e sugestões — de produtos, de comportamentos e de ideologias que, muitas vezes, minam qualquer esforço de educação. Não basta mais orientar. É preciso mergulhar nesse novo universo, aprender a linguagem, decodificar as entrelinhas. É mais que desafiador — é disruptivo.
E a grande pergunta é: como construir confiança e, ao mesmo tempo, aprender com eles, como navegar nessas águas tão turbulentas?
Como em um país estrangeiro, a adolescência atual exige dos pais um novo “mindset”, uma nova postura, e um novo pacto baseado em conversa, escuta ativa, paciência e resiliência. As relações precisam de presença genuína, de aprendizado mútuo e de um alicerce afetivo que começa em casa. É na confiança e na transparência com os pais que os adolescentes podem construir a sua própria blindagem.
Mas me pergunto: onde essa confiança nasce? Quando é que plantamos dentro dos nossos filhos essa segurança que lhes dará raízes fortes para crescerem com convicção e autoestima? Porque o verdadeiro presente que podemos dar aos nossos filhos não é proteção total — isso não existe — mas sim preparo emocional para seguir uma jornada saudável.
Infelizmente, tenho visto com frequência famílias que convivem com seus filhos sem estarem realmente presentes. E por presença, não falo apenas de estar na mesma sala, mas de olhar nos olhos, criar espaços de qualidade e estabelecer conversas reais. Isso precisa começar cedo.
Hoje, é comum vermos crianças de 3, 4, 5 anos jantando com os pais em frente a um tablet. Nos restaurantes, os pequenos estão vidrados nas telas, alheios à própria comida, aos pais e ao mundo ao redor. Não aprendem o que estão comendo, não desenvolvem paladar, não observam comportamentos sociais. O momento da refeição, que antes era espaço de convivência, virou um intervalo silencioso entre telas.
Os adultos desaprenderam a ensinar sociabilidade. Em um restaurante, por exemplo, estamos juntos para comer e conversar. É ali que aprendemos a escolher a comida, sentir sabores, exercitar a paciência, falar sobre o dia. A troca de informações constrói raciocínio, atenção, educação. Um fala, o outro escuta. A comunicação se faz entre duas partes — e não com uma tela no meio.
Como estamos criando espaço para nossos filhos argumentarem, questionarem, construírem pensamento crítico, se não conversamos com eles de verdade?
E quanto aos bons modos? Quando ensinamos o uso do garfo e faca, a não desperdiçar comida, a esperar a vez de falar? Há quem diga que isso é bobagem da velha geração. Mas não é. Bons modos facilitam o convívio, ensinam respeito, e tudo isso se aprende ainda na infância — não como um “treinamento para adultos”, mas como parte do viver em sociedade.
Uma criança pequena está em formação. Absorve tudo com uma rapidez impressionante. E, muitas vezes, não respeitamos esse tempo, introduzindo o “antídoto digital” como solução para o que chamamos de “chatice infantil”. O tablet entra em cena para que os pais comam “em paz”. Mas que paz é essa? O silêncio de hoje pode ser o problema de amanhã.
A sociabilização, o diálogo — e por que não dizer? — as conversas sobre espiritualidade, estão cada vez mais raras nas famílias. Refletir sobre bem-estar, gratidão, compaixão, silêncio, fé… não se trata de religiosidade, mas de espiritualidade, mesmo. De conexão com algo maior. Os grandes líderes, pensadores, pessoas inspiradoras sempre falaram sobre a importância dessa inteligência espiritual. Ela é o que nos conecta com as grandes questões da humanidade e com o outro.
Na série, esses temas estão à margem. Não aparecem, não são citados. Mas são justamente eles que constroem confiança, noções de coletividade, amor, empatia, resiliência, respeito, autocuidado, aceitação da frustração — tudo o que forma o tal “caráter” que desejamos ver em nossos filhos e na sociedade.
A internet abriu a porta de todas as casas para o que antes conseguíamos barrar. Drogas, sexo, violência, jogos — tudo acessível. E o pior: os algoritmos entregam mais e mais do mesmo conteúdo, afunilando o repertório dos nossos jovens e criando bolhas de experiência que nenhum de nós desejaria que existissem.
E nós, pais, estamos despreparados para lidar com essa nova linguagem dos dilemas, porque já não a vivemos. E enquanto nos distraímos, eles transitam em um mundo que não compreendemos.
Na série, nada estava escondido — o bullying, as mensagens trocadas, os sinais estavam todos lá. Mas nenhum adulto soube ver. Nenhum soube ler.
E aí fica a pergunta mais dolorosa de todas: quando nos desconectamos dos nossos filhos, com o que — ou com quem — eles se conectarão?
“Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo”, escreveu o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein, em 1921. A pergunta que fica é: qual linguagem estamos ensinando aos nossos filhos? E que mundo queremos que eles sejam capazes de compreender, de acessar — e, acima de tudo, de transformar?
Porque talvez o maior ato de amor hoje não seja proteger, mas estar. Presente. Atento. Aberto.