Valorizando nossas raízes e nossa diversidade, poderemos oferecer muito mais para o mundo do que a próxima fintech que vai captar milhões no Vale do Silício
Assim como eu (e outras tantas milhões de pessoas), você deve ter acompanhado de perto os Jogos Olímpicos. E, assim como eu, deve ter vibrado e se emocionado com as conquistas de nossas medalhistas ao longo das semanas do evento.
Na delegação brasileira, os Jogos de Paris foram das mulheres. Das 20 medalhas que trouxemos, 12 foram conquistadas por elas. Das quatro medalhistas de ouro, três são mulheres negras. Tivemos ainda o feito histórico da ginasta Rebeca Andrade, que se consagrou como a maior campeã olímpica do país, com quatro medalhas na edição de 2024.
As vitórias de nossas atletas de ouro, prata e bronze vão muito além das quadras, ginásios e estádios. Quando digo isso, não estou me referindo apenas ao reconhecimento de competidoras que precisaram superar todo tipo de adversidade para chegar ao topo do esporte mundial.
Estou falando desses raros momentos em que paramos para celebrar a nossa diversidade. Das histórias inspiradoras das milhões de Rebecas, Bias, Anas e Dudas que representam rostos, culturas e costumes que formam o retrato de um Brasil repleto de potencialidades. De tempos em tempos, precisamos de uma mulher negra e periférica sendo ovacionada por uma plateia internacional para nos lembrar disso.
Tudo isso tem me feito pensar em como entendemos o que chamamos de brasilidade. Qual é o lugar que estamos buscando no mundo? Em quais exemplos estamos nos espelhando? Quais são as nossas principais referências de inovação e modelos econômicos?
Pelo que tenho visto, nossas expectativas e aspirações parecem reforçar uma profunda crise de identidade que se formou ao longo dos últimos séculos. Como sociedade, ainda somos extremamente carentes de validação externa. Valorizamos muito pouco os nossos saberes, regionalidades e ancestralidades. Temos uma Amazônia inteira para sonhar. Mas muitos de nós preferem olhar para um futuro que está partindo num foguete para Marte.
A diversidade brasileira é a melhor expressão de nossa universalidade. Mas precisamos transcender esse conceito além dos esportes, do samba e da feijoada
Na base desse sentimento está o tal do complexo de vira-lata, uma expressão criada pelo escritor Nelson Rodrigues para falar dessa sensação de inferioridade que os brasileiros teriam em relação ao resto do mundo. Uma espécie de Narciso às avessas.
Bom, em vez de refutar essa ideia, prefiro seguir uma linha apresentada por pensadores como Eduardo Gianetti, que sugerem a celebração do vira-lata que existe dentro de todos nós. Mexer e remexer o caldeirão de culturas, tradições e valores que são parte intrínseca da nossa história.
Essas ideias estão reunidas no ensaio “Elogio ao vira-lata”, no qual Gianetti mostra que o verdadeiro complexo é achar que a falta de um suposto pedigree seja uma coisa ruim. A diversidade brasileira é a melhor expressão de nossa universalidade. Mas precisamos transcender esse conceito além dos esportes, do samba, da feijoada e das propagandas de Havaianas.
Temos literalmente um território continental para atuar e estender nossa visão a novas realidades. Do norte ao sul do país, encontramos ecossistemas vibrantes de inovação, que ganham força ao focar em regionalidades e forças criativas que estão bem diante dos nossos narizes.
Basta olhar para a potência de locais como o Vale do Dendê, na Bahia, o Porto Digital, em Pernambuco, ou o Manaus Tech Hub, na Amazônia. E não é só no setor de tecnologia. Na publicidade, temos agências como a Gana, que vem acumulando premiações e resultados para clientes ao criar campanhas e projetos que contemplam as mais diversas faces da realidade brasileira. No entretenimento, a Lab Fantasma se transformou em uma das principais produtoras do país ao apostar em um modelo de produção e distribuição cultural conectado aos valores do rap nacional.
Não faltam exemplos de empreendedores e empreendedoras que fizeram sucesso fora do eixo tradicional de negócios. O que precisamos fazer é justamente derrubar esse eixo: a exceção precisa virar a regra, simples assim.
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Isso não acontecerá sem um novo sistema de geração de oportunidades. A intencionalidade (essa palavra que está na moda) é importante para guiar ações individuais e coletivas. Intenções, no entanto, não mudam o jogo se não forem acompanhadas de mudanças concretas nos incentivos que existem para abrir caminhos de prosperidade. Estou falando de investimentos reais e mensuráveis em negócios e talentos que representem o que realmente temos de melhor por aqui.
Não quero soar ufanista ou ingênua em relação a todos os problemas estruturais que existem no país. Mas acredito que podemos oferecer muito mais para o mundo do que a próxima fintech que vai captar milhões no Vale do Silício.
Nos negócios e nos esportes, nossas conquistas mais significativas têm surgido da valorização das nossas raízes e da nossa diversidade. Quando olho para a imagem de três mulheres negras no maior pódio da ginástica olímpica — e uma brasileira sendo reverenciada no lugar mais alto pelas suas rivais — não consigo deixar de ser otimista (ou melhor, uma realista esperançosa) em relação às possibilidades que temos para criar esse futuro. Vamos apostar mais nisso. A vira-lata que habita em mim saúda a vira-lata que habita em você.