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Desmascarando a incompetência 2.0

Conheça a história de Gerômio. Identifique os Gerômios da sua empresa. E entenda de uma vez por todas a nova dinâmica do colaborativo mundo dos dados e da transformação digital, em que os Gerômios são relevantes

Cássio Pantaleoni
6 de agosto de 2024
Desmascarando a incompetência 2.0
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Ninguém notava o Gerômio, exceto ele mesmo, enquanto apoiava o queixo no cabo do esfregão, ruminando seus assuntos, como se descansasse. Como funcionário da limpeza, lotado no chão de fábrica, ali pertinho das máquinas que incansavelmente despejavam óleo de soja nas latas, ele fazia sua parte.

Certa feita, o engenheiro de produção veio ter ali com consultores – outros engenheiros contratados a peso de metal raro para resolver um problema. Fato é que ocasionalmente a máquina falhava no despejo do óleo, o que eventualmente gerava uma lata vazia que iria ter com as prateleiras do supermercado até que um consumidor denunciasse o fato. Era desperdício, era incômodo, feria a reputação da marca. O objetivo: encontrar um modo para que as latas vazias não fossem despachadas para os mercados. O encarregado queria pedir a palavra, mas ninguém notava o Gerômio.

Durante quase uma semana os engenheiros estudaram atentamente o processo de funcionamento da envasadora, a disposição milimétrica das latas que desfilavam em sequência, a velocidade média do despejo e da esteira. Tudo para encontrar uma maneira de evitar que latas vazias fossem seladas e encaminhadas às revendas. O esfregão ia e voltava, com vontade de ajudar, enquanto assistia de boca torta a todas aquelas ideias e opiniões. Mas ninguém notava o Gerômio. 

Foi no decorrer do quinto dia, enquanto os engenheiros apresentavam projetos sofisticados, e dispendiosos pelas características funcionais requeridas, que o Gerômio, sem ninguém notar, foi até o almoxarifado. Voltou com um ventilador na mão e um sarcasmo embutido. Depois foi até o final da esteira, ali onde as latas supostamente cheias passariam para a etapa de selagem, e ligou o equipamento. Os recipientes desfilavam à frente do ventilador normalmente, até que, algum tempo depois, um deles voou da esteira impulsionado pelo vento. A lata estava vazia. Aí notaram o Gerômio.

A história ilustra algo que passa despercebido em grande parte das organizações: a criatividade precisa encontrar espaço entre as intrincadas hierarquias de poder e de status. Uma pesquisa publicada no _Polish Journal of Management Studies_ de 2014 registrava que 20% dos colaboradores de empresas britânicas e norte-americanas não encontravam condições para expressar-se de maneira criativa. O Instituto Gallup registrava em 2017 que 40% dos membros de equipes organizacionais não eram motivados a exercer criatividade. 

Será que é possível descobrir a criatividade oculta pelas hierarquias formais que invariavelmente se estabelecem? E, se por ventura a descobrimos, será que extraímos dali os fundamentos da inovação? Quantos de nós estão verdadeiramente engajados para que o tradicional princípio de _missão organizacional_ permaneça válido, favorecendo o sucesso dos negócios, das equipes e dos indivíduos, através da franca expressão criativa?

Bem, passaram-se 20 anos desde que publiquei o livro Desmascando a incompetência. À época, este breve ensaio elaborava uma densa argumentação acerca dos bloqueios invisíveis que sempre impediram o aproveitamento das capacidades humanas no ambiente organizacional. A conclusão, então, era bastante direta: no âmbito da competição (dissimulada ou não) que contamina o espírito da hierarquia, a incompetência (aquela que gera custos desnecessários, retrabalhos, perdas de receita, perdas de clientes, perda de mercado) advém da covardia. 

Sim, covardia. O termo é forte, reconheço, porém, devemos entendê-lo como traço fundamental de um receio inculcado pela cultura do poder. Em resumo, a covardia acontece como efeito colateral decorrente da necessidade de justificar a sua posição de superioridade hierárquica, justificativa sustentada pela crença de que as hierarquias existem em razão de níveis de sabedoria distintos e que se você alcança a posição de chefe é porque dos outros não pode advir ideias melhores do que as suas. Ou seja, a incompetência cria Gerômios, mas ninguém nota. 

Contudo, ao escrever o livro, não almejei apresentar receitas para evitar o fenômeno. De certo modo, foi texto incompleto. Se tivesse que escrevê-lo hoje, certamente incluiria alguns capítulos com sugestões para mitigar o ocultamento das competências em função da covardia de certos “gestores”. Por força dos efeitos da transformação digital e da relevância da inovação para o sucesso dos negócios, creio que deveria incluir elaborações acerca das características do mundo digital. Sobretudo porque, em tal circunstância, inovação e criatividade habitam o mesmo universo, com forças gravitacionais que ora distorcem a relação entre risco, relevância e efetividade. Isto é assunto para um livro inteiro.

A NOVA VERSÃO, 20 ANOS DEPOIS – UM ASPECTO

Por ora, apresento aqui um aspecto que incluiria na nova versão do texto: a consideração fundamental de que o mundo digital é essencialmente colaborativo, ainda que grande parte desta colaboração ocorra de maneira inadvertida. Após desmascarar a incompetência, precisamos recorrer à essência da transformação digital para efetivamente realizar a promessa da inovação contínua.

Note que o ambiente digital nos oferece a possibilidade de sermos notados. E tal possibilidade se abre em larga medida porque estamos dispostos a notar os outros. O resultado é a franca experiência de interação, rica em informação. Ninguém é coagido a deixar de se expressar, logo todo o tipo de informação circula no meio. Entretanto, informação _per se_ é inútil se não estiver integrada. 

E esse é o alicerce do mundo digital: a forte integração entre seus constituintes torna homogêneo o comportamento de todos ali envolvidos. Não é requerida a especialização. Esse é o segredo: quanto mais especializados os elementos de um sistema são, mais difícil interagir; porém, quanto mais forte a integração estre as partes, mais homogêneo será o comportamento e o nível geral de diferenciação do sistema será reduzido.

Em larga medida, as organizações atuais ainda não entenderam esSa dinâmica. Insistem em especializar departamentos, áreas e divisões. Criam-se caixas nos organogramas com a esperança de que aquele gestor, em função de sua especialização, incorporará mecanismos para garantir a _Missão Organizacional_ e, assim, atender às metas e aos objetivos. Esquece-se que toda esta especialização do sistema organizacional dificulta a interação, por consequência a integração se torna árdua. Empresas que creem nesta abordagem são pesadas, lentas e burocráticas, ocultando a expressão criativa e fomentando as “covardias” que levam à incompetência.

A tendência a “departamentalizar”, supostamente especializando distinto elementos funcionais, fragiliza o funcionamento da entidade como tal, em função da fragmentação do processo decisório nos níveis tático e operacional. Além disso impõe jornadas intermináveis de negociação de pontos de vista contaminados pela necessidade de justificar a própria existência do departamento. Ambientes deste tipo inibem a expressão criativa de seus integrantes, instaurando ceticismo, descapricho e descompromisso. Margareth Heffernan, autora do livro A Bigger Prize: How We Can Do Better Than the Competition, ressalta que muitas empresas sofrem de narcisismo gerencial, são tão obcecadas em controles internos que esquecem do valor das pessoas. E este é a crítica principal ao modo como definimos estruturas, áreas ou departamentos: faz-se isso em razão de controles e não em função dos valores criativo, transformacional e inovador. Esquece-se o que temos aprendido com a transformação digital.

Para mitigar a instauração da incompetência nas organizações e conceder espaço para a expressão da criatividade é preciso incorporar o que temos aprendido com a digitalização dos negócios. Primeiramente precisamos aprender a notar os outros e desenvolver traços e comportamentos que mereçam ser notados. É necessário ainda promover a riqueza de informações, estimular a interação franca e conceder valor semelhante ao generalista e ao especialista. Precisamos nos conscientizar que as hierarquias não importam; o que importa é o valor das pessoas com as quais interagimos. Em tal circunstância todos que assim interagem querem perenizar este contexto, nutridos pela sensação de que desta maneira o trabalho se torna verdadeiramente útil, importante e recompensador. O resto, exatamente como ocorre com a inevitável transformação digital, é ruído de fundo.

Ah! Sobre a história do Gerômio, depois de ganhar um tapinha nas costas da turma dos engenheiros, ele foi ter com a família em casa, com tanto orgulho que contou a história com brio e recheios. Os filhos bateram palmas, a mulher o beijou com as duas mãos, o cachorro latiu. Dormiu feliz. Na segunda-feira seguinte, ao chegar na fábrica, não viu mais os engenheiros por ali. Os ventiladores zuniam enfadados ao final das esteiras. Tomou o esfregão com as duas mãos e dançou – como se entre os ruídos das máquinas ouvisse uma valsa. Mas ninguém notou o Gerômio.

Cássio Pantaleoni
Cássio Pantaleoni é managing director da Quality Digital e membro do conselho consultivo da ABRIA (Associação Brasileira de Inteligência Artificial). Tem mais de 30 anos de experiência no setor de tecnologia, é graduado e mestre em filosofia, e reúne experiências empreendedoras e executivas no currículo. Vencedor do prestigioso prêmio Jabuti, com a obra *Humanamente Digital: Inteligência Artificial centrada no Humano*.

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