Pesquisa inédita revela o que impede empreendedoras de ocupar esses espaços
Empreender já é desafiador por si só. Para as mulheres que empreendem em inovação é ainda mais. Vejamos alguns números: segundo o Startup Genome, apenas 31% das startups mapeadas, em 67 ecossistemas globais (pesquisados entre setembro de 2016 e novembro de 2022), possuíam, pelo menos, uma fundadora mulher. No Brasil, esse número é ainda inferior: somente 9,8% das startups têm, ao menos, uma mulher no seu quadro de fundadores, sendo ainda menor quando consideramos startups fundadas exclusivamente por mulheres, nesse caso, 4,7% das startups, segundo o Female Founders Report 2021.
Vale dizer que fundadoras de startups são mulheres em STEM (acrônimo em inglês que envolve as áreas de ciência, tecnologia e matemática), seja porque possuem formação acadêmica nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática, seja porque estão atuando em setores de tecnologia. Nesse sentido, elas já saem de um cenário de sub-representação anterior, em que a participação feminina nas ocupações STEM é de apenas 31%, segundo o “Projeto Igualdade STEM”.
Esses dados sugerem a existência de obstáculos para mulheres nesses ambientes e foi isso que a pesquisa “Mulher no Empreendedorismo de Inovação no Brasil”, realizada pela Júpiter Projetos, investigou: o que impede as mulheres de ocuparem esses espaços?
A pesquisa foi conduzida no primeiro semestre deste ano, com base em 26 entrevistas com empreendedoras em inovação das cinco regiões do Brasil. As entrevistas foram realizadas em diferentes estágios de maturidade na “jornada empreendedora” e incluiu também um recorte racial.
Com base nos dados coletados, foi construída uma jornada das empreendedoras em inovação que representa as experiências comuns relatadas pelas entrevistadas, aqui consolidadas na personagem “Simone” e exemplificadas através de falas extraídas das entrevistas. Essa trajetória reflete os principais desafios enfrentados na construção da sua identidade empreendedora.
Simone parte de um ambiente acadêmico ou corporativo, é uma mulher altamente escolarizada que está em busca de soluções inovadoras para problemas reais. Deseja que seu trabalho tenha alcance e impacto, tem um propósito e quer fazer a diferença no mundo.
Em determinado momento, ela descobre que o caminho para alcançar o seu propósito é o empreendedorismo. Mas, não como alguém que simplesmente diz “quero ter um negócio”, mas como alguém que acredita que não teria sentido, por exemplo, desenvolver um remédio para o câncer e vê-lo apenas na bancada do laboratório, sem chegar a quem realmente precisa. Mesmo sem saber exatamente o que significa “empreender”, ela decide seguir em frente para materializar seu propósito, ainda que, de início, não saiba ao certo como.
Empreender dentro da ciência é muito difícil, a gente não sabe os caminhos e nem onde começar, a gente não foi treinada para isso.
Daí, ela ingressa em uma incubadora ou aceleradora, submete e aprova o seu projeto em agências de fomento como CNPq: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e, assim, inicia sua jornada no território do empreendedorismo — um ambiente ainda desconhecido para ela.
Simone logo percebe que o mundo do empreendedorismo de inovação é majoritariamente ocupado por homens. Ela se dá conta de uma realidade em que mais de 90% das startups são fundadas exclusivamente por eles, como se fossem os habitantes naturais deste território. Não se espera que mulheres estejam ali, e, por isso, o jogo será diferente – e muito mais duro – para ela. Isso significa que terá que se provar mais do que eles para poder permanecer nesse espaço.
As pessoas estavam muito mais preparadas para ver homens neste papel do que mulheres.
Além disso, as dinâmicas territoriais são moldadas pelas dinâmicas dos homens, de modo que a sensação inicial das empreendedoras de falta de pertencimento não se dá apenas por não verem outras mulheres, mas também por não se identificarem com as regras deste jogo e não serem vistas como jogadoras.
Essas dinâmicas afetam diretamente a capacidade de Simone em construir uma rede de contatos, algo fundamental na trilha do empreendedorismo. A dificuldade surge porque, para que essa conexão se estabeleça, ambas as partes precisam se reconhecer como contatos relevantes, ou seja, ela também precisa ser percebida como uma jogadora desse jogo. Um dos exemplos relatados ocorreu em uma feira de negócios: em uma roda, todos trocam cartões de visita, mas ela é ignorada e não recebe cartão algum. Além disso, muitos negócios entre os homens acontecem em ambientes informais — como na mesa de chope ou em jogos de futebol — espaços aos quais ela, em geral, não acessa. E, quando ela tenta promover interações, convidando para um café, por exemplo, a proposta pode ser mal interpretada, sugerindo que o “jogo” dela possa ser outro.
Além das barreiras para o networking, Simone enfrenta outros obstáculos em momentos-chave de sua jornada empreendedora, como nas apresentações (pitches) para investidores e clientes potenciais.
No estudo “How the VC Pitch Process Is Failing Female Entrepreneurs“, publicado na Harvard Business Review, os autores relatam experimentos que demonstram que investidores tendem a preferir pitches apresentados por homens em detrimento dos feitos por mulheres, mesmo quando o argumento de venda é idêntico. Em outras palavras, é como se a identidade empreendedora tivesse um rosto de homem. Ao perceber isso em sua jornada, ainda que de forma inconsciente, muitas vezes, a Simone acaba modulando seu comportamento para se aproximar daquele que é considerado como o perfil ‘natural’ deste território. Simone relata:
No início da carreira eu desenvolvi coisas para me encaixar, modulando o comportamento, criei o meu perfil para me encaixar.
Se eu levar a minha feminilidade, eles passam por cima de mim.
Eu precisei me masculinizar muito para seguir no mercado.
Nesse estágio da jornada, Simone enfrenta um conflito de identidade, pois empreender por si só não é suficiente para que ela se sinta como uma verdadeira empreendedora. O sentimento de não pertencimento a leva a modificar seu comportamento. Na tentativa de se adequar, frequentemente, adota características associadas ao perfil masculino. Ela pode, por exemplo, evitar demonstrar vulnerabilidade e adotar uma postura mais agressiva e competitiva.
No entanto, esse comportamento é uma reprodução, não é ela. Isso faz com que a empreendedora se sinta como uma impostora. Nesse ponto da jornada, o conflito de tentar se encaixar em padrões que não são os seus pode agravar a desconexão e alimentar a chamada “síndrome da impostora”. Dúvidas constantes sobre a sua capacidade e a sua competência começam a surgir, mesmo diante de conquistas objetivas, como prêmios, que ela frequentemente credita à sorte ou a fatores externos que não ao seu próprio mérito.
Essas dúvidas não apenas afetam sua autoconfiança, mas também a sua disposição para correr riscos e lidar com falhas ou deficiências — ambos fundamentais para o empreendedorismo. Como consequência, muitas mulheres acabam evitando atividades essenciais para a sobrevivência no mercado, como buscar investimento, validar e vender os seus produtos ou serviços.
No ambiente de inovação, em que os produtos frequentemente não só são novos, mas também têm ainda pouca validação de mercado, o sucesso na captação de recursos e na venda está diretamente atrelado à credibilidade de quem empreende. Tanto investidores quanto clientes, especialmente nas fases iniciais, fazem apostas não só na ideia, mas também em quem a criou. Nesta etapa, Simone comenta:
“Perguntei para um investidor o porquê deles investirem pouco em startups de mulheres e ele respondeu: ‘elas não pedem.’ a gente tem isso de não ter ousadia, não se colocar.”
Contudo, o problema não se limita às empreendedoras evitarem buscar investidores(as) neste estágio da jornada. Ainda de acordo com o estudo “How the VC Pitch Process Is Failing Female Entrepreneurs”, existem também vieses de gênero entre os próprios investidores, que, em sua grande maioria, são homens. Eles tendem a favorecer comportamentos associados à imagem de um empreendedor homem, como ousadia e excesso de confiança, enquanto projetos com projeções mais realistas e consistentes, muitas vezes apresentados por mulheres, são interpretados como pouco ambiciosos e até falta de autoconfiança por parte empreendedora.
Não é por acaso que apenas 0,04% do total investido em startups em 2020 no Brasil foi destinado a startups fundadas exclusivamente por mulheres, segundo o Female Founders Report 2021.
Essa cultura de recompensar o excesso de otimismo (ou o chamado tamanho do sonho do(a) empreendedor(a)) tem gerado perdas significativas no mercado de venture capital, no qual recursos substanciais foram alocados nos últimos anos em negócios que, embora ousados, falharam em entregar as suas ambiciosas e irrealistas promessas.
Entretanto, a construção de sua identidade como empreendedora será um processo que envolve uma série de fatores. O primeiro passo é tomar consciência de como o ‘jogo’ do empreendedorismo funciona e reconhecer que há aspectos estruturais envolvidos, relacionados a vieses inconscientes. Até que compreenda essa dinâmica, Simone pode acreditar que os obstáculos que enfrenta são apenas dela.
Eu tive alguns obstáculos que eu não sei se são comuns.
Simone precisará encontrar outras empreendedoras que compartilharão experiências semelhantes para compreender que suas dificuldades estão relacionadas ao fato de ser mulher, e não a algo exclusivo dela. Nesse momento, ela valida suas dores através dos relatos de outras mulheres e tem contato com estratégias de superação. No entanto, devido à severa sub-representação de mulheres nesse ambiente, Simone poderá ter dificuldade em encontrar outras mulheres para compartilhar experiências no início de sua jornada, podendo levar um bom tempo até que isso ocorra.
Além de encontros com outras empreendedoras, a contribuição de mentores(as) e outros tipos de aliados(as) também será fundamental na construção de sua identidade empreendedora. Esses contatos fornecem suporte emocional, técnico, além de validar suas experiências e conquistas. Além disso, a superação de desafios diários e o acúmulo de pequenas vitórias também contribuirão para fortalecer a sua autoconfiança.
A cada desafio que supero, sinto que estou melhor.
À medida em que sua identidade empreendedora se consolida, Simone se sente mais confiante para se expor a investidores e às abordagens comerciais. Com os resultados que conquistou, percebe também que atributos como colaboração, empatia e uma abordagem mais inclusiva – frequentemente associados ao feminino– são, também, competências diferenciadas no contexto empreendedor.
Progressivamente, Simone percebe que a questão não se resume apenas à forma como o ecossistema reproduz expectativas de gênero, mas também sobre como ela lida e se posiciona diante desse contexto. Essa postura está intimamente ligada ao estágio de construção da sua identidade empreendedora. Quando fortalece essa identidade e efetivamente assume uma atitude empreendedora, ela conquista o seu espaço.
Eu participei de um programa em que na etapa técnica recebi perguntas muito idiotizadas e só fui ser respeitada depois que me expus mais.
Sim, a identidade empreendedora é influenciada por fatores ligados ao gênero, e as mulheres enfrentam desafios específicos na construção dessa identidade, diferentes dos enfrentados pelos homens. Para eles, já se espera que sejam os ocupantes naturais desse papel; para elas, no entanto, será necessário trilhar um caminho mais longo para se reconhecerem e assumirem plenamente esse papel, e, consequentemente, para serem reconhecidas como empreendedoras de fato.
A construção da identidade empreendedora, portanto, é um processo dinâmico e coletivo para essas mulheres, que buscam validar sua presença em ambientes historicamente dominados por homens. Os achados do estudo também se aplicam a outros contextos em que a presença de mulheres desafia expectativas de gênero, como nas carreiras STEM e em cargos de liderança. No entanto, a principal diferença entre esses espaços e o ambiente do empreendedorismo está no impacto trazido pelo prolongamento da fase crítica de construção da sua identidade profissional.
No empreendedorismo, a demora em consolidar essa identidade frequentemente resulta em descapitalização, dificultando a continuidade do negócio e até levando à saída definitiva do mercado. Esse se torna, então, um ponto decisivo para a permanência da mulher no ecossistema empreendedor. Em outros contextos, embora o custo também seja alto — como no caso do “teto de vidro “que limita a ascensão profissional — o impacto não necessariamente compromete a permanência da mulher em sua carreira.