
Na era da IA, talvez tenhamos de lidar com mais de um viés cognitivo, algo tão bem identificado pela economia comportamental. Então, é preciso pensar em qual é o impacto que duplos vieses podem ter sobre o marketing – e sobre a liberdade de escolha dos consumidores
“Mas o quê? De novo um artigo sobre inteligência artificial?”
Sinto muito, colega marqueteiro. Confesso que eu também estou “cabreiro” – para não dizer outra coisa – com a repetição do assunto, mas vamos todos ter que fazer aquele esforço hercúleo para sustentar, conviver com e entender que a inteligência artificial (IA) chacoalhou o tabuleiro da humanidade nesta década de tal forma que “o marketing como conhecemos” terá que ser revisto.
Dizem que o motor da tecnologia não tem marcha à ré, mas eu já daria um upgrade a essa máxima para a IA. De Alan Turing até hoje saímos da simples programação computacional de operações matemáticas para redes neurais complexas que se “autoprogramam”. afirmo que seu impacto é comparável à criação da prensa de Gutenberg.
A questão também reside no fato de que a IA aterrissou silenciosamente no nosso cotidiano em todos os segmentos e foi dando saltos em progressão geométrica (PG). Ao mesmo tempo, sua velocidade de adoção está sendo igualmente alta, meio que de “recorde olímpico” com a chegada das plataformas de processamento de linguagem natural como o ChatGPT, seu exemplo mais popular.
Este artigo é uma reflexão necessária, urgente até, para os profissionais de marketing. E também para aqueles que entendem que a economia comportamental regula as escolhas e decisões com base nos vieses humanos, mas ainda não entenderam o duplo viés a que agora a IA nos expõe.
Nossas escolhas já estão sendo enviesadas por alguém antes de chegar até nós.
Portanto, a razão deste artigo é nobre. Acredite.
Lançar mão de metáforas é o caminho mais fácil para se compreender as dinâmicas complexas das coisas, por isso, vou lançar mão da metáfora da dinâmica de crescimento e evolução de uma árvore, que todos nós conhecemos bem, para compartilhar minha visão sobre os impactos da inteligência artificial na economia comportamental.
Para isso, tomo como base e pressuposto a magnitude do que é a IA, comparando-a às raízes de uma árvore, já que ela pode ser considerada uma grande base estrutural (no caso uma plataforma) tecnológica que disponibiliza diferentes possibilidades para o homem contemporâneo.
Na metáfora de uma árvore, as raízes representam o desenvolvimento de redes neurais que formam a base da IA. Conforme ela vai crescendo, gerando o tronco em suas formas mais diversas, as diferentes ramificações desse tronco podem simbolizar as máquinas de IA, construídas a partir dessas redes neurais, proporcionando estabilidade e suporte para expansão da tecnologia. O exemplo mais evidente de uma ramificação da IA e dessa expansão é hoje o ChatGPT e o Bard do Google que todos conhecemos.
A partir dessas ramificações, os galhos que se projetam podem simbolizar aplicações potenciais da tecnologia para os consumidores, criando uma ampla gama de novas oportunidades. Brotando destes galhos as folhas representam a usabilidade resultante da integração da IA com a vida cotidiana. Assim como as folhas captam energia do ambiente e se adaptam ao sistema que estão inseridas, a IA aprende e evolui com o usuário, formando um ecossistema interconectado.
É aqui que a metáfora se torna ainda mais interessante. Abordar, avaliar e questionar os possíveis impactos das questões mais subjetivas da IA é uma prioridade para o homem de marketing, especialmente porque ela tem efeitos diretos na escolha e na lealdade às marcas.
Para isso, vamos continuar na nossa metáfora, uma vez que entramos em um território interessante (para não dizer conflituoso).
Depois de metaforizar com raiz, tronco, galhos e folhas, entram as flores que podem simbolizar o estágio inicial de mudança no comportamento do usuário em relação à IA. À medida que as pessoas começam a usar, se adaptar e abraçar ferramentas e serviços alimentados por IA, eles florescem (sem paródia, mas já usando o truque literário) em sua compreensão e aceitação da nova tecnologia.
Os frutos representam os resultados tangíveis da mudança no comportamento do usuário. À medida que a IA molda a forma como as pessoas se comunicam, tomam decisões e navegam em suas rotinas diárias, os frutos dessa mudança começam a amadurecer. Esses podem ser vistos como o crescimento na eficiência, a melhoria na qualidade de vida e a inovação em várias indústrias, entre outros benefícios palpáveis que surgem como resultado da interação com a IA.
Mas aqui entram questões delicadas, éticas e de integridade. Se você notar, na metáfora da árvore, estamos submetidos (palavra dura…) à natureza. E na inteligência artificial? Estamos submetidos a que natureza? À de seus algoritmos, à de sua programação, à de seus programadores?
Estamos de certa forma entregues às considerações e diretrizes de uma inteligência não-humana, cujas decisões estão vinculadas a uma programação predeterminada. As escolhas que parecem ser nossas, na verdade, podem ser o reflexo das decisões tomadas por algoritmos, o que nos leva à problemática: até que ponto é legítimo permitir que um código de máquina influencie ou mesmo determine nossas ações?
Aqui a metáfora da árvore se expande para incluir os polinizadores – abelhas, pássaros, vento – que desempenham um papel crucial na propagação da árvore, assim como os criadores de IA, que, com suas diretrizes computacionais e algoritmos, influenciam o crescimento e desenvolvimento da nossa “”árvore”” de IA.
Se, por um lado, a inteligência artificial vem “”resolver”” o paradoxo da escolha (teoria de Barry Schwarz que versa sobre “”quanto mais opções, pior para o usuário”), ela também vem eclipsar o que há de mais valioso no mundo democrático: a liberdade de escolha, já que os polinizadores das máquinas inteligentes carregam suas próprias crenças, valores e vieses, que podem ser implantados na árvore e, por sua vez, impactar o comportamento do consumidor desde o início da sua jornada até a decisão e a compra.
Tal como a polinização, a codificação e a programação da inteligência artificial são invisíveis para muitos, mas têm impacto visível quando se trata de construir um novo cenário competitivo entre marcas. Lealdade, consideração, preferência e até rejeição de marcas podem sumir num piscar de olhos.
Sem alardes, e com muito cuidado nas críticas, entramos numa seara ainda mais conflituosa, paradoxal até, uma vez que a teoria do paradoxo da escolha se rompe e colabora para decisões mais rápidas e eficazes, enquanto que o livre arbítrio pode descer ladeira abaixo e entrar no ralo para nunca mais voltar.
Somos levados a questionar o futuro dessa árvore se não houver uma discussão séria e urgente sobre o tema nas esferas científicas e acadêmicas. Certamente, essa “”árvore”” chamada IA poderá florescer e produzir frutos, mas será que os vieses plantados em suas raízes irão eventualmente provocar sua queda? Será que viveremos em harmonia com essa árvore ou será que ela irá realmente nos dominar, como propagam os cavaleiros do apocalipse do marketing?
Desculpem-me se tirei alguns do sonho “”das máquinas ajudando os homens””. Mas se faz muito necessária uma pitada de Black Mirror no nosso cotidiano para uma espécie de “”wake-up call”” (ou, como diria a Ana Maria Braga, um “”acorda, menina””) nessa tranquilidade tecno-marqueteira que estamos vivendo já, nos dias de hoje. “