Na sociedade do desempenho, conseguimos a façanha de “humanizar” as máquinas e robotizar as pessoas. Esta coluna sugere caminhos para nossa (re)humanização
Você se incomoda quando alguém te apresenta a uma outra pessoa apenas a partir do cargo, ou papel que você ocupa profissionalmente? – “Oi! Essa é Grazi, ela é diretora de… ” Sou? Será que a subjetividade de alguém pode ser reduzida ao seu papel profissional? Normalmente não faço desfeita, dou um oi de volta, mas sempre me pego pensando sobre isso nesses encontros.
No português, diferente do inglês, existe uma mudança sutil no uso dos verbos SER e ESTAR. O primeiro pode ser entendido como uma condição permanente e identitária, o segundo como uma qualidade temporária. Talvez por isso, quando eu me apresento em primeira pessoa, eu prefira usar o verbo “estar” para os papéis que ocupo, afirmando uma impermanência necessária. Afinal, hoje esses papéis fazem sentido, no entanto, eles não me definem.
Nós, que temos nos mostrado tão competentes em criar tecnologias que tomam emprestado características humanas – das redes neurais ao domínio das inteligências artificiais –, investimos muito em humanizar as máquinas e mal percebemos que, ao mesmo tempo, robotizamos as pessoas. Insistimos numa lógica de pessoas como simples elemento produtivo. Gente que é vista como recurso, ignorando completamente as outras dimensões que sua vida tem.
E daí? Daí que robotizar pessoas não funciona mais.
As pessoas estão infelizes e adoecendo. Segundo a Sociedade Brasileira de Inteligência Emocional, 77% dos brasileiros não se sentem realizados com suas vidas e 65% dos funcionários das empresas estão insatisfeitos com o lugar em que trabalham. Para piorar, o Brasil é o segundo país no mundo em casos de Síndrome de Burnout, perdendo apenas para o Japão em índices de estresse, de acordo com dados da ISMA Brasil – associação internacional voltada para prevenção e tratamento do estresse.
Como isso tudo começou? Com o desejo de produtividade, como quase tudo se inicia. Charles Chaplin, no filme Tempos Modernos, mostra o exemplo do OS (operário especializado em uma máquina) que se torna um apêndice do seu equipamento. O filme, de 1936, nos ajuda a compreender porque hoje pessoas abrem mão de seus sonhos e aspirações para cumpir metas, passando uma parte significativa de suas vidas sem prestar atenção no que é essencial. Agendas lotadas, mas existências vazias de significado. Um sequestro de subjetividade. Como alerta Ailton Krenak: “”nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida””.
Num mundo hiperconectado, onde quase tudo fica obsoleto da noite pro dia, o que podemos fazer para nos tornar capazes de disfundir os papéis profissionais que temporariamente ocupamos de quem realmente somos? Como imaginar um futuro do trabalho, no qual possamos e queiramos ser mais gente e menos máquinas ou zumbis corporativos? A capacidade de reinventar nossas vidas e nossas “carreiras” será a maior e mais valiosa competência possível. Assim, quem sabe, poderemos imaginar caminhos de (re) humanização.
Me identifico com Adam Grant quando ele diz que adoraria viver em um mundo onde as pessoas gastassem tanto tempo desenvolvendo seu caráter quanto desenvolvendo suas carreiras. E se nossos códigos morais fossem tão bem definidos quanto nossas ambições? Metas sem valores são vazias. “”Levar uma vida que vale a pena ser vivida, não apenas uma vida de sucesso””. Aliás, o que significa sucesso pra você?
Hoje entendo que ser uma profissional melhor passa pelo exercício de ser uma pessoa melhor, todos os dias. Já o contrário não é verdade. Se você só se preocupa em aperfeiçoar uma dimensão da sua vida, as outras podem ficar para trás. E você acaba se tornando o seu trabalho. E quando ele deixar de existir, o que sobrará de você?
Ainda muito jovem, fiquei deprimida por ter sido demitida de um emprego. Os conselhos que eu queria ter recebido naquela época, só encontrei anos depois, no texto “”The Work You Do, the Person You Are”” da maravilhosa Toni Morrison:
1. Seja qual for o trabalho, faça-o bem – não para um chefe, mas para você mesma;
2. Faça seu trabalho, mas não deixe que ele te faça;
3. Você não é o trabalho que faz; você é a pessoa que é.
Essa é a minha primeira coluna aqui neste espaço. Se você curtiu o texto, sinta-se à vontade para compartilhar em suas redes para recomendá-lo. Se você não curtiu, manda uma mensagem! Vai ser ótimo ouvir sua opinião.”