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Derrube as práticas icônicas de sua empresa

Essa é a terceira via para o líder mudar a cultura e o mindset das pessoas – e é a que mais funciona

Herminia Ibarra
30 de julho de 2024
Derrube as práticas icônicas de sua empresa
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Quase todos os líderes empresariais vêm rezando na mesma cartilha: tentar ajudar sua organização a se tornar mais ágil, mais inovadora, mais experiente do ponto de vista digital e mais centrada no cliente.

Cedo ou tarde, eles esbarram em valores e comportamentos enraizados, e o progresso é interrompido. Isso é especialmente verdadeiro com a transformação digital. Os especialistas concordam que os mindsets tradicionais e as “maneiras de fazer as coisas aqui” – uma definição rasa de cultura – são os primeiros culpados pelo entrave à transformação fundamental que as tecnologias emergentes habilitam.

Porém cultura organizacional é algo difícil de mudar. Ela é intangível; não existem manetes para controlá-la diretamente. Como notou Ed Schein, da MIT Sloan School, aquilo a que os líderes dedicam atenção e tempo – e não o que dizem – fornece as melhores informações sobre a cultura de uma empresa. Pense nisso como a diferença entre uma declaração formal de valores e o que os funcionários pensam da empresa na Glassdoor. Normalmente, existe um grande abismo entre as aspirações relatadas e a realidade experimentada.

Ao deparar com esse abismo, os líderes costumam cair em uma de duas armadilhas: confiam demais nas mudanças formais e estruturais (novas linhas de hierarquia, novos cargos e unidades de trabalho), como um esforço para mudar o mindset das pessoas, ou simplesmente delegam a tarefa de mudar a cultura ao RH, na esperança de que, com tempo e  treinamento, os novos lemas se tornem realidade. É evidente que nenhuma dessas abordagens funciona.

Em minha pesquisa contínua sobre o modo como as organizações estabelecidas se modificam para a era digital, observei uma terceira via que traz melhores resultados: identificar as práticas icônicas da empresa – práticas emblemáticas dos valores culturais históricos – cuja existência envie mensagens contraditórias sobre o desejo de mudança da organização. E, então, eliminá-las (ou mudá-las profundamente).

As práticas icônicas surgem para ajudar a organização a executar sua missão primordial, suas tarefas cruciais. Com o tempo, têm funções simbólicas e cerimoniais, como de mostrar que alguém é cria da casa, uma pessoa que entende e preserva fielmente aquela cultura.

Uma boa maneira de identificar as práticas icônicas é notar quais costumes, vistos de fora, parecem consumir o tempo das pessoas. Por exemplo, como explicou o CEO da Amazon, Jeff Bezos, num recente relatório anual, o tempo que os executivos da Amazon passam reunindo informações e preenchendo seus famosos memorandos de seis páginas é um forte sinal de dois importantes valores corporativos – profunda reflexão e clareza. Na Amazon, aprender a redigir um bom memorando é um rito de passagem para os cargos executivos seniores.

Em um ritual que, com frequência, surpreende os novos contratados, todas as reuniões da Amazon começam com 30 minutos de silêncio em que os participantes leem um memorando antes de iniciar qualquer discussão.

A prática se tornou icônica, ao mesmo tempo que é um teatro corporativo e uma ferramenta de produtividade: embora os memorandos ainda possam ser cruciais nas tomadas de decisão, um olho antropologicamente treinado vê que eles são fundamentais para demonstrar quem é “amazônico” de verdade.

 As práticas icônicas podem incluir qualquer coisa, desde seminários externos e reuniões de avaliação de resultados até processos de integração e tomadas de decisão sobre pessoas e dinheiro. Geralmente se desenrolam na forma de eventos dos quais participa a elite do poder da empresa – encontros esses em que se fazem e desfazem reputações. Tais eventos costumam ocorrer em locais com nomes especiais que evocam a importância daquilo que está acontecendo (era o “grande salão”, em uma das instituições em que trabalhei, por exemplo). Como tão bem notou Schein, essas práticas delimitam as “fronteiras da inclusão” da organização, esclarecendo quem está dentro do círculo, quem está fora e quem é só tolerado – mas na periferia.

Logicamente, as práticas icônicas precisam mudar quando a empresa cresce ou enfrenta novas ameaças. O problema é que, como emblemas de valores essenciais que um dia definiram o sucesso do negócio, podem perdurar mesmo quando obsoletas, insignificantes ou contraproducentes.

Quando os valores culturais de uma organização contrariam as mudanças necessárias? Quando há um ponto de inflexão do tipo “o que fez você chegar até aqui não vai fazer você chegar lá”, como ocorre com a disrupção digital sofrida por várias empresas atuais. Seleciono a seguir exemplos reais de eliminação ou transformação radical de práticas icônicas em nome de uma mudança cultural.

O RELATÓRIO DA MICROSOFT

Quando Jean-Philippe Courtois assumiu o controle de vendas globais, de marketing e de operações da Microsoft em 2016, reportando-se diretamente ao CEO, Satya Nadella, percebeu que precisava afastar a organização da cultura de fiscalização

e levá-la para a de aprendizado e treinamento. O “motivo” era a mudança da empresa para uma estratégia de priorizar a computação cloud; uma vez que a Microsoft não era especialista no negócio, seus funcionários precisariam cometer e tolerar erros. Isso exigia trocar o mindset “sabe-tudo” pelo “aprende- -tudo”, como Nadella explicou.

Com seu faturamento dependendo mais que nunca de quanto os clientes estavam usando os produtos e serviços da Microsoft, a empresa reestruturou radicalmente a força de vendas, ajustou as remunerações e implementou ferramentas digitais para fornecerem dados em tempo real sobre usos feitos pelos clientes e sobre o tempo que cada vendendor destinava a cada cliente.

No entanto, os comportamentos demoravam a mudar. Courtois percebeu o que travava as pessoas: a cultura ainda valorizava quem dava a resposta certa e era o grande especialista, sem espaço para erros ou fracassos. Uma das manifestações mais visíveis dessa cultura fiscalizatória era a avaliação de janeiro.

Evento no qual gestores seniores do mundo respondiam a interrogatórios da direção sobre seus progressos e planos, a avaliação de janeiro “dava medo nas pessoas”. Um gestor lembra que “parecia quase uma prova oral à moda antiga, de ‘decoreba’ sobre o negócio”. Sobram histórias sobre gestores que começavam a se preparar bem antes do Natal – ou seja, boa parte dos profissionais mais valiosos da empresa passava mais de um mês se preparando para uma reunião!

Então, Courtois decidiu extinguir a tal avaliação. Tinha sido “um momento de aprendizado importante, que remetia a Bill (Gates), mas agora era um número teatral”.  O ritual sinalizava que a empresa ainda recompensava quem tinha a resposta certa.

A tecnologia havia eliminado a necessidade de fiscalização e de controle gerencial à moda antiga. Como Courtois explicou, uma vez que todos tinham o mesmo dashboard, os executivos podiam passar muito menos tempo em avaliações e dedicar esse tempo a aprender.

Assim, as reuniões trimestrais de avaliação de negócios foram transformadas em “conexões trimestrais de negócios”, mudança de nome que significou sessões menores, mais leves e interativas. Uma nova planilha reduziu a quantidade de slides que os gestores apresentavam nas reuniões a um décimo da quantidade anterior. Os líderes foram incentivados a se comportar mais como mentores do que como fiscalizadores, e a fazer perguntas do tipo: “O que você está testando? O que funciona? Como podemos ajudar?”. Os cálculos são de que, só na Europa, no Oriente Médio e na África, 4 mil horas de preparação dos gestores foram poupadas – e redirecionadas para os clientes e funcionários.

AS REUNIÕES DA A&O

Em 2019, um dos cinco maiores escritórios de advocacia de Londres, o Allen & Overy (A&O), foi o primeiro entre seus pares a eliminar o processo tradicional de avaliação de desempenho. O A&O havia investido em tecnologia integrada à execução de serviços jurídicos tradicionais e desejava nutrir uma “cultura colaborativa, em que indivíduos talentosos, trabalhando juntos, desabrochem e consigam grandes feitos” e na qual “o pensamento independente e imaginativo não só é incentivado, mas esperado”.

Assim como em qualquer outro escritório de advocacia de ponta, os sócios seniores dedicavam um tempo excessivo a reuniões de moderação, cuja finalidade era criar avaliações de desempenho comparativas de seus associados juniores, baseadas em notas e em um ranking, normalmente em uma curva de distribuição forçada. Tais reuniões eram consideradas penosas, porém, necessárias para calibrar padrões entre equipes. “Do contrário”, como me disse um dos sócios, “você acabaria olhando só para sua própria equipe, como se estivesse no vácuo. É preciso checar seu bom senso de tempos em tempos para garantir que aquilo que você acha fabuloso realmente é”.

Enquanto alguns sócios ainda consideravam as reuniões úteis, outros achavam que sua relação custo-benefício não compensava mais, em razão do tempo e do esforço exigidos. Além disso, alguns sentiam que a prática reforçava os silos que estavam tentando derrubar os líderes de cada especialidade faziam lobby para seus próprios associados. E viam o processo como uma barreira para conversas sobre o desenvolvimento dos associados juniores, pois o que mais importava era a “nota” da pessoa.

Inspirando-se no que outras firmas estavam fazendo, David Benton, diretor de mercados de capital da A&O, insistiu para que a empresa se afastasse da classificação numérica como indicador da habilidade, do desempenho e do potencial individual. Como seus colegas o descreveram, Benton fazia perguntas que  a avaliação não ajudava a responder: “Como garantir que as conversas ideais estavam acontecendo em cada nível? Como podiam melhor identificar e estimular talentos? O que ajudaria as conversas entre sócios e associados a incluir informações úteis de modo que os associados entendessem objetivos e oportunidades?”

Em 2019, após três experimentos-piloto, um novo sistema de gestão de desempenho foi implantado em quase todos os escritórios da A&O – e o velho sistema de avaliação, extinto. Os primeiros levantamentos de dados e análises destacaram o aumento da satisfação dos funcionários com o feedback dos seus gestores e com o apoio ao plano de desenvolvimento, e os sócios ficaram satisfeitos com as discussões de talento que substituíram as antigas reuniões de moderação.

O QUE VOCÊ PRECISA PARAR DE FAZER?

Claramente, o problema atual não está nas reuniões sobre conduta de negócios ou na calibração de talentos em si. Nem no futuro os problemas residirão em memorandos de seis páginas para apresentar ideias ou em qualquer outra prática hoje na moda. O problema é a persistência de práticas que já foram vitais um dia, mas que, no presente momento, só mostram que seus participantes sabem desempenhar em alto nível, nada mais.

Enquanto buscam a transformação digital de suas empresas, os líderes devem orquestrar também uma mudança cultural. Em vez de priorizar a execução impecável, valorizar a experimentação e o aprendizado mais ágil. Em vez de fazer um trabalho compartimentado, incentivar a colaboração verdadeiramente interdisciplinar. Em vez de avaliar o desempenho passado das pessoas, permitir seu futuro desenvolvimento.

Articular a ambição é a parte mais fácil dessa mudança. Derrubar o que atravanca o caminho nessa direção é muito mais difícil.

Na transição da antiga para a nova maneira de agir, as práticas icônicas expressam aquilo que o psicólogo Robert Kegan, de Harvard, chama de compromissos competitivos: prioridades conflitantes que nos fazem manter um pé no freio e o outro no acelerador. Por exemplo, queremos ser mais ágeis e inovadores, mas sem diminuir as margens e a eficiência. Queremos mentes criativas, mas não queremos perder o controle da gestão.

Para estimular uma verdadeira mudança de cultura, os líderes devem alinhar o que dizem com a maneira como suas empresas realmente agem ao resolver problemas relevantes e tomar decisões-chave. Suas organizações precisam desaprender as lições de anos de experiência e entender que os valores culturais que foram sucesso no passado podem estar engessados em práticas icônicas que hoje as atrasam. Nesse esforço, mais importante do que aquilo que os líderes decidem implementar é aquilo que têm a coragem de eliminar.

Herminia Ibarra
Professora da London Business School, especialista em comportamento organizacional.

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