
O cooperativismo brasileiro nos oferece um exemplo de liderança que precisa aprender e fazer aprender; no caso, o objeto do aprendizado deve ser a inovação. A experiência da Sicredi Ouro Verde MT, no Mato Grosso, ilustra as possibilidades
Em um cenário de transformações tecnológicas aceleradas e de mudanças profundas no comportamento do consumidor, a inovação deixou de ser uma opção para se tornar uma condição de sobrevivência – até mesmo para modelos historicamente resilientes como o cooperativismo. Mas como inovar em um sistema baseado em valores humanos, democracia econômica e desenvolvimento local exige mais do que investir em tecnologia? Isso requer um redesenho cultural.
O cooperativismo é, por essência, um modelo inovador. Desde sua origem em 1844, foi uma resposta criativa e coletiva a um problema real. Hoje, mais de 20 milhões de brasileiros estão conectados a essa lógica de prosperidade compartilhada. E se, por um lado, a inovação tradicional costuma enaltecer disrupções individuais, o cooperativismo ensina que as maiores transformações nascem da construção coletiva – seja entre cooperados, comunidades ou entre cooperativas e startups.
Inovar, nesse contexto, não é apenas gerar valor econômico, mas também impulsionar impacto social positivo e perenidade organizacional.
Embora o cooperativismo de crédito seja um modelo genuinamente inovador em sua origem, o passar dos anos trouxe também um certo apego ao tradicionalismo que, em muitos casos, manifesta-se como excesso de burocracia, aversão ao risco e dificuldade em lidar com a velocidade das transformações externas.
Paradoxalmente, esse comportamento acontece dentro de um setor – o financeiro – historicamente reconhecido por ser early adopter de tecnologias e práticas inovadoras. Isso evidencia um desalinhamento crítico: para que o cooperativismo não apenas sobreviva, mas prospere em um contexto de disrupções aceleradas, é urgente promover uma mudança de mindset organizacional.
O desafio do cooperativismo não é apenas cultivar práticas inovadoras, mas desenraizar mecanismos culturais profundamente institucionalizados que reforçam a aversão ao risco e a lógica da escassez. Isso exige uma abordagem ativa para desaprender, ou seja, uma em que a organização não só aprende o novo mas desaprende o que ficou obsoleto.
Nos últimos anos, o cooperativismo de crédito emergiu como uma das forças mais relevantes do Sistema Financeiro Nacional (SFN), apresentando crescimento contínuo, ganhos de capilaridade e impacto socioeconômico tangível. Em 2023, o segmento alcançou R$ 731 bilhões em ativos – um salto de quase 24% em relação ao ano anterior – e já atende a mais de 17,9 milhões de associados.
Com presença em 57% dos municípios brasileiros e gerando mais de 112 mil empregos diretos, as cooperativas de crédito têm se posicionado não apenas como alternativas, mas como protagonistas na construção de um modelo financeiro mais justo, humano e eficiente.
Ainda assim, apesar do desempenho robusto, a participação do cooperativismo de crédito representa apenas cerca de 10% do SFN – bem abaixo de benchmarks internacionais, como Alemanha, Canadá e França, onde esse índice pode ultrapassar 60%. Essa discrepância revela uma janela estratégica: enquanto outros países já consolidaram o cooperativismo como espinha dorsal do sistema financeiro, o Brasil ainda opera com enorme potencial inexplorado.
Não é uma questão de falta de potencial. Pelo contrário: o modelo cooperativo entrega eficiência financeira, inclusão econômica, educação financeira e fidelização acima da média. A questão central é escalar isso com estratégia, agilidade e ousadia. O que falta, portanto, não é capacidade operacional, a meu ver, e sim investimento intencional em inovação como uma alavanca estratégica de crescimento exponencial.
E, aqui, inovação precisa ser entendida além do viés tecnológico: estamos falando da inovação como disciplina, como cultura, como diferencial competitivo que transforma o modo de pensar, decidir e agir. É isso que permite às cooperativas se reinventarem, explorarem novos fluxos de receita, se conectarem com ecossistemas de inovação e ampliarem suas capacidades por meio de parcerias estratégicas com startups, edtechs, fintechs e instituições de conhecimento – capturando, assim, as oportunidades que surgem em um mercado financeiro cada vez mais fluido, fragmentado e digital.
Desenvolver competências tecnológicas não é sobre inventar a roda – é sobre saber usá-la no timing certo. Em um setor onde a inteligência artificial e a cibersegurança já definem vantagem competitiva, o conservadorismo e o medo do desconhecido podem ser letais.
O caminho? A liderança deve adquirir fluência digital, a fim conseguir antecipar riscos cibernéticos e explorar o potencial da IA para gerar valor ao associado. Essas são agora condições de sobrevivência – não tendências como alguns talvez ainda as considerem. Quem insistir em operar com as lógicas do passado corre o risco de tornar-se irrelevante em um ecossistema financeiro cada vez mais dinâmico, automatizado e competitivo.
Presente em Mato Grosso, a Sicredi Ouro Verde MT atua com mais de 183 mil associados e tem investido sistematicamente na construção de uma cultura de inovação robusta e enraizada em seus territórios. Sua jornada da inovação não começou com um laboratório high-tech ou com inteligência artificial embarcada em todos os processos. Começou de forma intencional, mas tradicional – e profundamente simbólica.
Em 2022, o primeiro movimento estruturado veio na forma de um hackathon com foco em desenvolvimento sustentável, reunindo colaboradores, parceiros e a comunidade para cocriar soluções que unissem impacto social, ambiental e valor econômico.
No ano seguinte, em 2023, essa faísca virou estrutura. A cooperativa criou oficialmente sua área de inovação, com a missão de transformar cultura, processos e ir além das fronteiras tradicionais do cooperativismo. E não parou por aí: naquele mesmo ano, a Sicredi Ouro Verde MT deu um passo ousado ao assumir publicamente seu compromisso com o futuro da região, ao assinar o Pacto pela Inovação de Lucas do Rio Verde – tornando-se protagonista de um movimento sistêmico para posicionar a cidade como referência global em economia verde até 2033.
Entre os avanços mais estruturantes dessa jornada, destaca-se o lançamento do programa de intraempreendedorismo Box 810. Mais do que fomentar a geração de ideias, o programa consolidou uma abordagem estratégica de desenvolvimento de pessoas orientada à resolução de problemas reais da cooperativa, previamente definidos com base no planejamento estratégico.
Com foco na construção de capacidades empreendedoras, a trilha de aprendizagem foi desenhada a partir da metodologia CEP+R (contexto, experiência, prática e reflexão), alinhando teoria e prática em um processo de formação contínua. Entre os projetos desenvolvidos, destaque para as ações focadas em recuperação de crédito, atualização cadastral e golpes e fraudes, que possibilitaram testar hipóteses com foco em experiência do cliente e eficiência operacional. O resultado contribuiu para o processo de criação de uma cultura organizacional que não apenas estimula a inovação, mas a traduz em entregas tangíveis e conectadas aos objetivos do negócio.
A mensuração da cultura de inovação continua sendo um desafio para muitas organizações. Inspirada no modelo de avaliação cultural desenvolvido por Jay Rao e Joseph Weintraub, publicado na MIT Sloan Management Review em 2013, a Sicredi Ouro Verde MT decidiu, em 2024, enfrentar esse desafio de maneira estruturada, aplicando internamente a pesquisa Quão inovadora é a cultura da sua empresa?. Essa ferramenta avalia a cultura de inovação com base em seis dimensões interdependentes: valores, comportamentos, clima organizacional, recursos, processos e sucesso.
Ao contrário de abordagens que tratam a cultura como elemento intangível, essa metodologia permitiu capturar evidências concretas sobre os fatores que sustentam – ou limitam – a capacidade inovadora da cooperativa. O diagnóstico resultante serviu como instrumento estratégico, orientando decisões sobre comunicação interna, redesenho de programas e engajamento da liderança.
Os resultados foram claros: todas as seis dimensões apresentaram evolução entre a primeira e a segunda aplicação, confirmando que a cultura de inovação não é estática, mas um ativo estratégico que pode – e deve – ser desenvolvido com disciplina e alinhamento.
É importante reconhecer, no entanto, que a Sicredi Ouro Verde MT ainda está nos estágios iniciais dessa jornada de aprendizagem e de inovação. E isso não diminui a relevância do caminho percorrido – pelo contrário, reforça a consciência de que a construção de um ambiente verdadeiramente inovador não se resume a criar uma “cultura de inovação”, mas a transformar a própria cultura organizacional com e pela inovação.
Os desafios ainda existentes não representam fragilidades, mas oportunidades latentes de mais aprendizado, alinhamento e expansão. Em vez de buscar a perfeição imediata, a cooperativa tem optado por trilhar um caminho intencional, onde cada passo pavimenta as condições para que a inovação deixe de ser uma agenda específica e passe a se expressar como um princípio transversal, que permeia decisões, comportamentos e estratégias.
A INOVAÇÃO VERDADEIRA NÃO TEM DE SER uma ruptura que ignora o passado; pode ser uma evolução que parte das raízes para gerar futuro com relevância. No contexto do cooperativismo de crédito, inovar não significa abandonar os princípios fundadores – ao contrário, significa reinterpretá-los à luz das novas demandas sociais, tecnológicas e econômicas, mantendo a centralidade das pessoas e da comunidade como diferencial competitivo.
A jornada da Sicredi Ouro Verde MT evidencia que a construção de uma cultura de inovação sólida e orientada por dados pode ser, simultaneamente, um instrumento de transformação interna e um mecanismo de resiliência estratégica. Quando a inovação é vivida como prática coletiva – e não apenas como discurso institucional –, ela deixa de ser um esforço pontual e se torna parte intrínseca do tecido organizacional, moldando decisões, comportamentos e resultados de forma contínua e integrada.
O futuro do cooperativismo de crédito não será construído apenas com tecnologia de ponta, mas com cultura viva, intencionalidade estratégica e liderança enraizada no propósito. Inovar, nesse contexto, é a arte de traduzir valores em valor não só para os associados, mas também para a sociedade.
Acredito que é nas raízes do propósito de uma organização que nasce sua força para inovar. Quem conecta passado e futuro com intenção faz com que o propósito se transforme em legado.